domingo, 20 de junho de 2010

QUEM O CRIOU?

QUEM O CRIOU?
Lúcifer : Fui criado pelo próprio Deus, bem antes da existência do homem. [Ezequiel 28:15]

COMO VOCÊ ERA QUANDO FOI CRIADO?
Lúcifer : Vim à existência já na forma adulta e, como Adão, não tive infância. Eu era um símbolo de perfeição, cheio de sabedoria e formosura e minhas vestes foram preparadas com pedras preciosas. [Ezequiel 28:12,13]

ONDE VOCÊ MORAVA?
Lúcifer : No Jardim do Éden e caminhava no brilho das pedras preciosas do monte Santo de Deus. [Ezequiel 28:13]

QUAL ERA SUA FUNÇÃO NO REINO DE DEUS?
Lúcifer : Como querubim da guarda, ungido e estabelecido por Deus, minha função era guardar a Glória de Deus e conduzir os louvores dos anjos. Um terço deles estava sob o meu comando. [Ezequiel 28:14; Apocalipse 12:4]

ALGUMA COISA FALTAVA A VOCÊ?
Lúcifer : (reflexivo, diminuiu o tom de voz) Não, nada. [Ezequiel 28:13]

O QUE ACONTECEU QUE O AFASTOU DA FUNÇÃO DE MAIOR HONRA QUE UM SER VIVO PODERIA TER?
Lúcifer : Isso não aconteceu de repente. Um dia eu me vi nas pedras (como espelho) e percebi que sobrepujava os outros anjos (talvez não a Miguel ou Gabriel) em beleza, força e inteligência. Comecei então a pensar como seria ser adorado como deus e passei a desejar isto no meu coração. Do desejo passei para o planejamento, estudando como firmar o meu trono acima das estrelas de Deus e ser semelhante a Ele. Num determinado dia tentei realizar meu desejo, mas acabei expulso do Santo Monte de Deus. [Isaías 14:13,14; Ezequiel 28: 15-17]

O QUE DETONOU FINALMENTE A SUA REBELIÃO?
Lúcifer : Quando percebi que Deus estava para criar alguém semelhante a Ele e, por conseqüência, superior a mim, não consegui aceitar o fato. Manifestei então os verdadeiros propósitos do meu coração. [Isaías 14:12-14]

O QUE ACONTECEU COM OS ANJOS QUE ESTAVAM SOB O SEU COMANDO?
Lúcifer : Eles me seguiram e também foram expulsos. Formamos juntos o império das trevas. [Apocalipse 12:3,4]

COMO VOCÊ ENCARA O HOMEM?
Lúcifer : (com raiva) Tenho ódio da raça humana e faço tudo para destruí-la, pois eu a invejo. Eu é que deveria ser semelhante a Deus. [1Pedro 5:8]
QUAIS SÃO SUAS ESTRATÉGIAS PARA DESTRUIR O HOMEM?
Lúcifer : Meu objetivo maior é afastá-los de Deus. Eu estimulo a praticar o mal e confundo suas idéias com um mar de filosofias, pensamentos e religiões cheias de mentiras, misturadas com algumas verdades. Envio meus mensageiros travestidos, para confundir aqueles que querem buscar a Deus. Torno a mentira parecida com a verdade, induzindo o homem ao engano e a ficar longe de Deus, achando que está perto. E tem mais. Faço com que a mensagem de Jesus pareça uma tolice anacrônica, tento estimular o orgulho, a soberba, o egoísmo, a inimizade e o ódio dos homens. Trabalho arduamente com o meu séquito para enfraquecer as igrejas, lançando divisões, desânimo, críticas aos líderes, adultério, mágoas, friezas espirituais, avareza e falta de compromisso (ri às escaras). Tento destruir a vida dos pastores, principalmente com o sexo e dinheiro. [1Pedro 5:8; Tiago 4:7; Gálatas 5:19-21; 1 corintios 3:3; 2 Pedro 2:1; 2 Timóteo 3:1-8; Apocalipse 12:9]

E SOBRE O FUTURO?
Lúcifer : (com o semblante de ódio) Eu sei que não posso vencer a Deus e me resta pouco tempo para ir ao lago de fogo, minha prisão eterna. Eu e meus anjos trabalharemos com afinco para levarmos o maior número possível de pessoas conosco. [Ezequiel 28:19; Judas 6; Apocalipse 20:10,15]



MEDITE NESSA MENSAGEM. VEJAM QUE FOI ELABORADA COM BASE NOS VERSÍCULOS BÍBLICOS, POR ISSO É UMA ILUSTRAÇÃO DA MAIS PURA VERDADE.

“COMO DIZ O ESPÍRITO SANTO: HOJE, SE OUVIRDES A SUA VOZ, NÃO ENDUREÇAIS OS VOSSOS CORAÇÕES.” HEBREUS 3:7,8

sábado, 19 de junho de 2010

50  MARÇO DE 2004  PESQUISA FAPESP 97
Monumento à saúde
rnaldo Vieira de Carvalho (1867-1920),
cirurgião e ginecologista, e Enéas de Carvalho
Aguiar (1902-1958), administrador
hospitalar, morreram prematuramente,
ambos na casa dos 50 anos de idade, e
puderam vislumbrar apenas o nascimento
das instituições que fundaram:
respectivamente, a Faculdade de Medicina
da Universidade de São Paulo
(FMUSP), criada em 1913, e seu
braço hospitalar, o Hospital das Clínicas de São Paulo (HC),
inaugurado em 1944.A memória desses dois médicos é lembrada
todos os dias, até mesmo por pessoas que mal sabem quem
eles foram. Dr. Arnaldo e dr. Enéas são os nomes de duas movimentadas
avenidas paralelas, na Zona Oeste de São Paulo, que
comportam o quadrilátero formado pela FMUSP, o HC e seus
diversos institutos. Trata-se do mais famoso e produtivo endereço
de atendimento de saúde, ensino e pesquisa aplicados à
medicina do Brasil.
Paulistas e paulistanos buscam o atendimento do Hospital
das Clínicas em casos de emergência e também em aflições
corriqueiras, atraídos pela eficiência de seus médicos, um porto
seguro em meio às deficiências da saúde pública. Brasileiros
de todos os cantos do país, portadores de doenças raras ou tratadas
com ferramentas experimentais, acostumaram-se a viajar
milhares de quilômetros para se tratar no HC – muitos desconfiam
da idéia de que existem centros de excelência em
quase todas as regiões.Maior complexo hospitalar da América
Latina, o HC fez, só no ano passado, 1,5 milhão de atendimentos
ambulatoriais e 550 mil de emergência. Seus 2.492 leitos receberam
60 mil pacientes. Foram realizadas 45 mil cirurgias,
entre as quais 500 transplantes e 6 milhões de exames laboratoriais.
Como faculdade e hospital formam uma teia complexa
e indistinta, o acompanhamento da notável diversidade de pacientes
faz a diferença na formação de novos médicos e pesquisadores.
Atualmente, a FMUSP abriga 1.422 estudantes de graduação
(nota A no Provão) e 2.055 de mestrado e doutorado
(70% dos programas de pós-graduação da FMUSP foram
muito bem avaliados pela Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (Capes).
A tradição de grande escola de medicina remonta as décadas de
1940 e 1950 – quando um professor catedrático era tão respeitado
quanto o governador do Estado e os alunos, submetidos a disciplina
férrea, iam às aulas de terno e gravata. Hoje, o perfil dos 344
docentes da FMUSP mudou bastante.“O campo de conhecimen-
A A trajetória da Faculdade
de Medicina da Universidade
de São Paulo (USP),
um dos mais vigorosos
pólos de assistência à saúde
e de pesquisa científica
do país, inaugura
a série de reportagens
que Pesquisa FAPESP
publicará a respeito dos 70
anos de fundação dessa
universidade. As próximas
edições apresentarão
outros núcleos e atividades
representativas
da história da USP
MIGUEL BOYAYAN
FABRÍCIO MARQUES
No prédio da FMUSP,
hoje tombado pelo
Patrimônio Histórico,
emergiram gerações dos
melhores médicos brasileiros
USP70

to da medicina expandiu-se e já não cabe naquelas antigas
cadeiras dos catedráticos. Os médicos se especializam cada
vez mais cedo”, diz Ricardo Brentani, presidente da Comissão
de Pesquisa da faculdade. Outra mudança, essa mais
recente, é a dedicação cada vez maior à pesquisa científica.
Nos últimos dez anos, cresceu progressivamente a produtividade
dos 62 Laboratórios de Investigação Médica
(LIM), os braços de pesquisa da FMUSP. Tome-se como
referência os trabalhos originais publicados em revistas
indexadas na base do Institute for Scientific Information
(ISI). Em 1993, constam 72 trabalhos dos LIM na base
ISI. Em 2002, esse número saltou para 338. Em termos
relativos, o avanço também é significativo. Os LIM eram
responsáveis por 1,6% de todas as publicações brasileiras
na base ISI em 1993. Em 2002, essa fatia alcançou 3%.
ssa mudança foi provocada por um conjunto
de medidas que estimularam a
atividade de pesquisa. Uma fração de
2% do dinheiro que o HC recebe do Sistema
Único de Saúde (SUS), o equivalente
a R$ 2,6 milhões em 2002, passou
a ser destinada aos LIM – e distribuída
segundo critérios de produtividade, como a publicação
de trabalhos em revistas científicas de impacto e a capacidade
de atrair recursos externos para pesquisa. Os laboratórios
são avaliados anualmente. Conforme a nota
dada, cada LIM recebe um quinhão maior ou menor.
Esse dinheiro é gasto com autonomia, na compra, por
exemplo, de material ou de passagens aéreas para pesquisadores
participarem de congressos. Os 126 docentes
com dedicação exclusiva à faculdade também conquistaram
o direito a uma suplementação salarial variável. São
avaliados com notas de A a D. Os de nota A chegam a receber
R$ 3 mil extras no contracheque. Os de nota D não
ganham nada. “A avaliação leva em conta várias atividades
do professor, mas, sobretudo, a dedicação à pesquisa”,
diz José Eluf Neto, diretor-executivo dos LIM.
As agências de fomento também tiveram um papel
importante nesse novo perfil.“O raciocínio é simples”, diz
Maria Mitzi Brentani, professora associada da disciplina
de Oncologia. “Com as verbas de agências, os laboratórios
equiparam-se para fazer pesquisa, desonerando o orçamento
da faculdade e do HC, que pode ser gasto com salários
e atendimento ao público”, diz. Em 2002, essas verbas
alcançaram R$ 15,6 milhões.As principais fontes foram
a FAPESP, com R$ 8,6 milhões, e o Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), com
R$ 1,8 milhão. “No contexto da pesquisa biomédica, a
FMUSP toma parte de todos os grandes programas da
FAPESP. Participou de todos os genomas. E muitos dos
professores têm programas temáticos com a instituição”,
diz Eduardo Massad, professor de Informática Médica.
Massad coordena um LIM que se notabilizou pela elaboração
de modelos matemáticos capazes de avaliar a disseminação
de doenças e pela criação de estratégias para com-
52  MARÇO DE 2004  PESQUISA FAPESP 97
batê-las. Recentemente, uma pesquisa anteviu a eclosão
de febre amarela numa região do interior paulista fustigada
pela dengue e povoada pelo mosquito que espalha
as duas doenças – o que aconteceu em seguida.
Células-tronco - Um exemplo da expansão da atividade
de pesquisa é o Laboratório de Genética e Cardiologia
Molecular, que ocupa o 10º andar do novo edifício do
Instituto do Coração, o Incor. Com um projeto arquitetônico
inspirado em laboratórios da Universidade Harvard,
a instituição lidera, desde a primeira metade dos
anos 1990, uma pesquisa de mapeamento de regiões cromossômicas
ligadas à hipertensão. Outra linha de pesquisa
busca entender como fatores genéticos e ambientais
interagem para o aumento do risco cardiovascular –
e demonstrou que a hipertrofia no coração de camudongos
é tão mais grave quanto maior for o número de
cópias do gene responsável pela produção da enzima
conversora de angiotensina I (ECA). A alteração genética,
é certo, não é causa direta do problema, mas desponta
quando um outro gatilho sobrecarrega o coração. O Laboratório,
que se integrou ao esforço para mapear a bactéria
Xylella fastidiosa, hoje abriga uma vasta coleção de
pesquisas, que vão desde a genética envolvida na resistência
das veias safena usadas como pontes no coração
até a aplicação de células-tronco para reconstituir regiões
do músculo cardíaco afetadas por enfartes. Especula-se
que a pesquisa de células-tronco possa ter um efeito mobilizador
da opinião pública semelhante ao advento dos
transplantes cardíacos no final dos anos 1960. Dez pacientes
enfartados já receberam injeções dessas células,
capazes de se transformar em qualquer tecido. Reagiram
bem. A pesquisa agora vai seguir com mais 60 pacientes
para avaliar a eficácia desse procedimento na capacidade
de reconstituir vasos e tecidos. “São imensas as oportunidades
de novos tratamentos relacionados à terapia celular
e à terapia gênica”, diz o professor José Eduardo
Krieger, responsável pelo laboratório.
O laboratório do Incor nem de longe é exemplo isolado.
Recentemente, a pesquisadora Ana Claudia Latronico,
da Unidade de Endocrinologia do Desenvolvimento
do Hospital das Clínicas, ganhou o Prêmio Richard E.
Weitzman, concedido em junho pela Sociedade Americana
de Endocrinologia, pela participação em estudos
pioneiros que descrevem novas mutações genéticas causadoras
de doenças hormonais. A equipe chefiada pela
professora de oncologia Maria Mitzi Brentani, no Instituto
de Radiologia, participa de pesquisas como a procura
de marcadores moleculares relacionados à resposta
à quimioterapia dos pacientes de câncer de mama. A
equipe apresentou recentemente num congresso as características
genéticas que, supostamente, fazem pacientes
até com tumores avançados reagirem bem à doxorrubicina,
droga quimioterápica. A descoberta, agora
submetida a estudos mais amplos, pode ter um papel
importante na escolha do tratamento para cada pacien-
E
USP70
PESQUISA FAPESP 97  MARÇO DE 2004  53
nos irreversíveis nos pulmões”, diz Marcelo Amato. O
equipamento consiste numa cinta atada ao tórax, repleta
de eletrodos, que emitem pulsos na direcão do pulmão
em freqüências imperceptíveis ao corpo humano. Em um
monitor, os pulsos se transformam em imagens que revelam
os movimentos do pulmão – o ar que entra e sai é
um isolante elétrico. O aparelho será avaliado na UTI do
Hospital das Clínicas.
Ensino e pesquisa são indissociáveis na trajetória da
FMUSP, mas a balança historicamente pendeu para a
formação profissionalizante. A faculdade começou a funcionar
em 1913 e ganhou sua sede atual, um conjunto arquitetônico
em frente ao Cemitério do Araçá, dezoito
anos mais tarde. O prédio foi tombado pelo Patrimônio
Histórico em 1981, por encarnar um conceito de escola
médica modelar para a época – dois grandes departamentos
(o laboratório e o clínico) instalados num
bloco só, num “hospital de ensino”. Como os professores
deveriam dedicar todo seu tempo à faculdade, a contrapartida
arquitetônica foi a criação de gabinetes para os
docentes e seus assistentes. O conjunto foi construído
com dinheiro da Fundação Rockefeller e reproduzia o
ensino médico praticado nos Estados Unidos, fortemente
vinculado à pesquisa.Mas a medicina que se praticava
no Brasil, naquela época, tinha sotaque francês –
um modelo mais empírico e menos investigativo. Até
a Segunda Guerra, quando os professores da FMUSP
te, de acordo com as peculiaridades de seu DNA. “Nosso
objetivo de longo prazo é encontrar um largo espectro
de marcadores de tumores”, diz a professora Maria
Mitzi Brentani. Outra linha de pesquisa investiga a relação
entre os baixos níveis de vitamina D no sangue e a
eclosão do câncer de mama em mulheres com mais de
65 anos.Uma hipótese é que a baixa exposição ao sol e a
alimentação pobre tenham um papel na deficiência da
vitamina D e no conseqüente surgimento da doença.
o Laboratório de Pneumologia, o
professor-assistente Marcelo Amato
desenvolveu um equipamento
capaz de produzir imagens, através
da emissão de pulsos elétricos, das
condições pulmonares de pacientes
de UTIs submetidos a respiração
artificial. É comum que a ventilação forçada cause danos
ao pulmão e os médicos têm ferramentas pouco acuradas
para detectar esses problemas. Certas manobras,
como a fisioterapia e a calibragem dos equipamentos,
podem ajudar a prevenir o efeito colateral. Em 1998, o
grupo da Pneumologia publicou na revista científica The
New England Journal of Medicine um estudo mostrando
os danos da ventilação mecânica. “Um caso famoso é o
do presidente Tancredo Neves, que, depois de várias semanas
internado e respirando artificialmente, sofreu da-
Ensino e pesquisa são indissociáveis na FMUSP,
mas o gigante HC reforçou o caráter assistencial
N
MIGUEL BOYAYAN
queriam se reciclar, costumavam
ir a Paris.
Segunda mão - Em 1934,
com a fundação da USP,
a Faculdade de Medicina
integrou-se, oficialmente,
ao corpo da Universidade.
A criação do
Hospital das Clínicas, em
1944, e o gigantismo que
logo adquiriu moldaram
o caráter assistencial e
formador de bons médicos
da faculdade. A pesquisa
acabou ficando em
segundo plano. “Se você
analisar a biografia dos
grandes professores da
faculdade naquela época,
verá que eram grandes
clínicos ou cirurgiões,
grandes professores, mas
hoje seriam vistos como pesquisadores pouco produtivos”,
diz o professor Eduardo Massad. A pesquisa que
por muito tempo se fez na FMUSP, e ainda ocupa espaço
lá dentro, foi a que aproveita a diversidade de pacientes
e seus diagnósticos para testar remédios. “Mas é um
tipo de pesquisa de segunda mão. As drogas não são desenvolvidas
aqui dentro”, completa Massad. A reforma
universitária de 1969 representou um golpe nas atividades
da pesquisa. Com a transferência das cadeiras básicas
da FMUSP para a Cidade Universitária, a faculdade
ressentiu-se com a perda de pesquisadores e laboratórios.
A reação veio em 1975, com a criação dos Laboratórios de
Investigação Médica, os LIM, protagonistas da atual escalada
de pesquisas.
Também remonta aos anos 1970 uma experiência de
gestão que teria impacto na instituição. Lastreado pelo
prestígio popular que conquistou ao realizar o primeiro
transplante cardíaco do Brasil, o cirurgião Euryclides Zerbini
(1912-1993) conseguiu apoio e dinheiro para criar
um apêndice do Hospital das Clínicas ligado à sua especialidade,
o Instituto do Coração (Incor). Do governo
estadual, conseguiu a cessão de um terreno na avenida
dr. Enéas, à época um barranco nos fundos do Instituto
Emílio Ribas. Além da competência de seus clínicos e cirurgiões,
o Incor foi inovador no modelo de gestão. O
instituto é gerenciado pela Fundação Zerbini, uma entidade
de direito privado, que instituiu um modelo para
captar recursos privados, reservando 20% dos leitos do
Incor para convênios médicos e pacientes particulares.
Os 80% demais são vagas do SUS. O modelo gerou um
equilíbrio financeiro que garantiu a continuidade de
projetos de pesquisa nos anos 1980, quando a economia
do país estagnou. A fundação promove a contratação de
funcionários e a complementação salarial de empregados
do HC. Exige-se que os médicos trabalhem em tempo
integral – podendo até mesmo atender pacientes particulares
em consultórios na instituição. O exemplo do Incor
inspirou a criação, nos anos 1980, da Fundação Faculdade
de Medicina da USP, que também busca levantar recursos
privados para a instituição, mas não tem tanta flexibilidade
quanto a Fundação Zerbini.
riamos um ambiente em que médicos
e funcionários trabalham motivados e
a rotatividade é muito baixa, de 3%
dos funcionários ao ano”, diz o professor
Sérgio Almeida de Oliveira, diretor
da Divisão de Cirurgia Torácica e
Cardiovascular. A Fundação Zerbini
reserva verbas para que os médicos do hospital submetam
suas pesquisas a revistas internacionais e participem de
congressos. Em 2002 havia 463 projetos de pesquisa em
andamento.O fôlego financeiro da instituição, contudo,
vem do atendimento aos pacientes. O segundo prédio
do Incor, recém-inaugurado, foi idealizado para abrigar
apenas atividades de pesquisa.Mas, quando a Fundação
Zerbini colocou o projeto na ponta do lápis, viu-se que
era necessário ampliar o atendimento para arrecadar
mais dinheiro do SUS e de convênios. Decidiu-se, então,
reservar o 6º, 7º e 8º andares para internações. Hoje, o
hospital tem 510 leitos.
Um paradoxo permeia a história da FMUSP. Não há
professor, aluno ou funcionário que não reclame da superlotação
do HC e de seu impacto perturbador no
ambiente de ensino e na pesquisa. Mas é a demanda da
população que abastece o complexo com uma diversida-
54  MARÇO DE 2004  PESQUISA FAPESP 97
A construção do prédio, no final dos anos 20,
foi financiada pela Fundação Rockefeller
C‘‘
FOTOS MIGUEL BOYAYAN / ACERVO MUSEU HISTÓRICO PROF. CARLOS DA SILVA LACAZ
USP70
de de diagnósticos e tratamentos que são uma matériaprima
fundamental para o ensino e a pesquisa. O prestígio
da instituição vem de sua capacidade de fazer
medicina de ponta, que é indissociável da pesquisa. Recentemente,
a direção do hospital anunciou a decisão de
rejeitar o atendimento de casos simples para investir na
vocação original da instituição, que são os casos complexos.
A medida, a rigor, já era realidade.O HC tem um telefone
para marcar consultas, criado para evitar as filas.
Na prática, funciona como uma peneira. Recebe 20 mil
ligações por dia e agenda 200 consultas. “Sem dispersar
esforços com casos sem gravidade, seremos capazes de
fazer pesquisas de mais qualidade e melhorar o ensino”,
afirma Giovanni Cerri, atual diretor da FMUSP.“A faculdade
está muito bem quando é comparada a escolas do
Brasil, mas, diante do desempenho de escolas de outros
países, vemos que é possível
melhorar”, diz.
É difícil mensurar o
impacto que o movimento
exagerado do HC tem
na formação dos estudantes.
“Nossos alunos
são tão bons que superam
quaisquer deficiências
da instituição”, diz
o professor Paulo Saldiva,
coordenador do Laboratório
de Poluição
Atmosférica da FMUSP,
um dos mais produtivos
da instituição, com mais
de 20 pesquisas publicadas
por ano em revistas
internacionais. O vestibular
da FMUSP é concorridíssimo
e seleciona
a elite dos candidatos – a
nota de corte do curso de
medicina é a mais alta entre
todas as carreiras. Depois
vem a disputa pelas
vagas na residência médica,
que atrai os melhores
alunos do país. Igualmente,
é concorrido o ingresso
nos programas de pósgraduação.“
Podemos nos
dar ao luxo de não absorver
os pesquisadores que
formamos, porque no
ano que vem virá uma
turma tão boa quanto a
atual”, diz Saldiva.
Os pesquisadores da
FMUSP gostariam que a
instituição investisse mais
nos laboratórios de investigação
médica. Lembram
que o SUS remunera o Hospital das Clínicas segundo
uma tabela especial, pagando até 46% a mais a
cada procedimento porque se trata de um instituição
dedicada à pesquisa. “O hospital recebe do SUS 46% a
mais por fazer pesquisa, mas reverte à pesquisa apenas
2%. Pode-se dizer que é pouco”, diz o professor Eduardo
Massad.Mas mesmo a concessão dos atuais incentivos à
pesquisa teve alguma oposição dos docentes que cultuam
a tradição profissionalizante da instituição. Essa
tensão é saudável. Ninguém duvida de que a grande vocação
da FMUSP continuará sendo a de grande escola
médica e a do HC, de importante pólo de assistência à
população. Mas o prestígio do quadrilátero das avenidas
dr. Arnaldo e dr. Enéas tem a muito a ver com a pesquisa
produzida ali, com a capacidade que a instituição mantém
de empurrar as fronteiras da medicina. •
PESQUISA FAPESP 97  MARÇO DE 2004  55
Dr. Arnaldo, cirurgião
pioneiro (acima e à
dir.), fundou a FMUSP
em 1913, mas não viveu
para ver a inauguração
da sede, em 1931 (alto)
62  ABRIL DE 2004  PESQUISA FAPESP 98
Terra produtiva
ão européias as raízes da centenária Escola
Superior de Agricultura Luiz de Queiroz
(Esalq), unidade da Universidade de São
Paulo (USP) que se tornou a principal referência
em ensino de Ciências Agrárias no
país. O conceito acadêmico, com prédios de
arquitetura refinada entremeados por campos
experimentais, foi inspirado nas escolas
agrícolas de Grignon, na França, e de Zurique,
na Suíça, freqüentadas na segunda
metade do século 19 por Luiz de Queiroz (1849-1898), riquíssimo
herdeiro paulista. De volta ao Brasil formado em Agronomia,
ele decidiu fundar uma escola seguindo os moldes europeus.
Comprou uma fazenda para erguê-la, nos arredores do
município de Constituição, hoje Piracicaba, e pediu ajuda ao
governo republicano para construir os prédios. A subvenção,
porém, foi negada. Para não deixar a idéia morrer, Luiz de Queiroz
decidiu doar a fazenda ao governo com a condição de que a
escola, pública, surgisse ali. Ela seria fundada como escola prática
de nível médio, em 1901, já depois da morte do idealizador,
mas respeitou o sonho europeu. Em 1907, a fazenda transformou-
se em parque, raro exemplo do estilo inglês de paisagismo
no Brasil. Os grandes gramados, alamedas de linhas curvas e
maciços de árvores em pontos estratégicos são hoje uma jóia
do ambiente urbano de Piracicaba. É assinado pelo belga Arsênio
Puttemans, também criador dos jardins do Museu do
Ipiranga, em São Paulo.
Transformada em escola superior e integrada à estrutura da
USP quando a instituição foi fundada há 70 anos, a Esalq seguiu
bebendo da fonte européia. Seu patriarca acadêmico é o geneticista
Friedrich Gustav Brieger, judeu alemão que migrou para o
Brasil na leva de pesquisadores estrangeiros que fundaram a
USP. Pois foi nesse cenário de país temperado que se consolidou
um panteão científico da agricultura tropical. Sobretudo nos
primeiros 60 anos de atividade, a Esalq liderou pesquisas que
mudaram os hábitos alimentares dos brasileiros.Muitas hortaliças,
por serem de variedades européias, produziam bem no inverno,
mas eram escassas e caras no verão. O brasileiro passou
a comer salada o ano inteiro graças a pesquisas de melhoramento
genético de alface, repolho, brócolis, couve-flor, cebola e
berinjela feitas na Esalq. A instituição teve papel-chave no desenvolvimento
de variedades de milho mais nutritivas e ricas
em aminoácidos. E também na pesquisa de propriedades do
solo e nutrição de plantas que transformou o cerrado brasileiro,
antes imprestável para o plantio, em celeiro de 30% da pro-
Na série de reportagens
sobre os 70 anos
da Universidade de
São Paulo,
Pesquisa FAPESP
mostra a trajetória
da centenária Escola
Superior de Agricultura
Luiz de Queiroz, a Esalq,
que mudou hábitos
alimentares dos brasileiros
e hoje lidera pesquisas
em biotecnologia
FABRÍCIO MARQUES
USP70
S
PESQUISA FAPESP 98  ABRIL DE 2004  63
FOTOS EDUARDO CESAR
dução de grãos. Não dá para escapar do clichê: a Esalq muitas
vezes foi a salvação da lavoura para os agricultores. Certa vez,
no final dos anos 1950, um grupo de produtores do cinturão
verde de Mogi das Cruzes, de origem nipônica, levou ao então
governador Jânio Quadros um pedido inusitado. Queriam que
o governo concedesse o regime de tempo integral – e o respectivo
salário maior – ao professor Marcílio de Souza Dias, artífice
de pesquisas de melhoramento genético. Figura lendária,
Marcílio foi escolhido o Pesquisador do Centenário da Esalq,em
2001. Avesso aos trâmites normais da carreira acadêmica, vivia
nos campos, fazendo cruzamentos de plantas e avaliando os resultados.
Com produção científica escassa, nem sequer tinha
doutoramento. Jânio promoveu o professor.
O perfil da escola mudou nas últimas décadas. O ensino, é
certo, continua de boa qualidade. Os seis cursos de graduação
oferecidos (Agronomia, Engenharia Florestal, Ciências Econômicas,
Ciências Biológicas, Ciências dos Alimentos e Gestão
Ambiental) são freqüentados por 1.830 alunos. No último Provão,
Éverton Yoshiaki Hiraoka, da Esalq, recebeu a nota mais
alta entre todos estudantes de Engenharia Agronômica do país.
Mas a escola já não é um celeiro isolado de bons profissionais,
como chegou a acontecer no passado. Divide o topo da graduação
com instituições como a Universidade Federal de Viçosa
(UFV) ou as unidades da Universidade Estadual Paulista
(Unesp) em Botucatu e Jaboticabal. Aquele tipo de trabalho de
campo em que se destacava o professor Marcílio de Souza Dias
passou a ser liderado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária,
a Embrapa (onde, aliás, centenas de ex-alunos da
Esalq atuam como pesquisadores). A pesquisa aplicada da Esalq
Ceres, deusa
da agricultura,
orna a sala
da diretoria
da Esalq, em
pintura de 1916
64  ABRIL DE 2004  PESQUISA FAPESP 98
tem espaço agora em áreas emergentes como controle
biológico de pragas. A escola desenvolveu uma armadilha
natural para capturar mariposas conhecidas como
bicho-furão, que na fase de lagarta ataca frutas cítricas.
A armadilha revela o grau de infestação dos cítricos
e aponta a hora adequada de aplicar inseticidas. Esta
pesquisa foi desenvolvida por José Roberto Postali Parra,
atual diretor da escola, e José Maurício Simões Bento,
em colaboração com a UFV e a Universidade da Califórnia,
Davis.
escola passou a investir fortemente em
outra vocação: a pós-graduação, que já
conferiu 5.300 títulos de mestrado e
doutorado desde 1964, quando foi criada.
Seus 16 programas, atualmente freqüentados
por 1.117 alunos, foram
responsáveis pela formação de 70%
dos doutores brasileiros em Ciências Agrárias. No campus
de Piracicaba, surgiria nos anos 1960 outra instituição
de pesquisa e pós-graduação, o Centro de Energia
Nuclear na Agricultura (Cena), também vinculado à
USP, mas com administração própria. O resultado dessa
nova estratégia na Esalq foi a expansão de laboratórios e
o investimento em fronteiras do conhecimento que nem
sempre geram aplicações imediatas. O exemplo mais eloqüente
é o da área de biotecnologia. “No início dos anos
1990, tivemos a sensibilidade de atrair um grupo de
jovens doutores que voltavam do exterior e, com eles,
avançamos em biotecnologia”, diz Raul Machado Neto,
vice-diretor da Esalq e presidente da Comissão de Pesquisa.
Apoiados no Núcleo de Apoio à Pesquisa em Biologia
Celular e Molecular na Agropecuária, os pesquisadores
participaram dos projetos Genoma da Xylella, da
cana-de-açúcar, da Xanthomonas, do câncer, do café e do
eucalipto, entre outros.
Há dez anos, a Esalq foi pioneira na pesquisa de biotecnologia
aplicada a animais.Hoje, o Departamento de
Zootecnia está integrado a dois grandes projetos de seqüenciamento
genético. Um deles é o Genoma Frango,
em parceria com a Embrapa Suínos e Aves. O projeto
começou há três anos e já identificou diversos genes relacionados
ao desenvolvimento muscular do frango. O
objetivo é encontrar a raiz genética que leva frangos a
acumular mais proteína do que gordura, a fim de melhorar
a qualidade da carne. O outro projeto é o Genoma
Funcional do Boi, realizado em colaboração com a
Unesp de Botucatu, financiado pela FAPESP e a Central
Bela Vista Genética Bovina, empresa que comercializa
sêmen e embriões bovinos. O projeto está concluindo
a fase de seqüenciamento e sairá em busca da identificação
de genes relacionados à resistência a parasitas, à eficiência
reprodutiva e à qualidade do couro.
O único laboratório de biotecnologia animal a participar
da rede que seqüenciou o genoma da Xylella
fastidiosa, a praga do amarelinho nos laranjais, foi a Zootecnia
da Esalq. “A oportunidade de participar do
projeto em parceria com outras instituições nos ajudou
a criar competência na área genômica, que agora compartilhamos
com outras instituições”, diz Luiz Leh-
USP70
O Departamento de Genética conseguiu
desenvolver eucaliptos transgênicos, que
prometem mais celulose por árvore
FOTOS EDUARDO CESAR
A
PESQUISA FAPESP 98  ABRIL DE 2004  65
mann Coutinho, professor-associado da
Esalq e responsável pelo laboratório, referindo-
se a professores, pesquisadores e estudantes
de pós-graduação de várias instituições
que passam pela Esalq. Lehmann é
um dos pesquisadores que chegaram à
escola no início dos anos 1990, depois de
fazer mestrado e doutorado em Zootecnia
na Universidade de Michigan e pós-doutoramento
em genética molecular.Nem só
de pesquisa básica vive o laboratório. São
oferecidos a produtores diversos testes genéticos
antes disponíveis apenas no exterior.
Suinocultores enviam à Esalq amostras
de pêlo ou sangue de seus animais, para
pesquisar a incidência de um gene relacionado
à má qualidade da carne e outro
ligado à capacidade de gerar mais filhotes
em cada gestação. O resultado dos testes
determina a escolha dos porcos para
reprodução. O laboratório também faz
exames de DNA em bois. Para quê? Para
garantir que um boi é mesmo o filho de
animais reconhecidamente superiores, pois
isso tem alto valor comercial. O erro no
diagnóstico de paternidade chega a 30%
nas fazendas de corte.
utro projeto de destaque
é o desenvolvimento
de eucaliptos
modificados geneticamente.
Uma equipe
do Departamento
de Genética da Esalq
conseguiu introduzir no eucalipto, matéria-
prima da celulose, um gene de ervilha
ligado à fotossíntese. O objetivo é melhorar
a captação de luz solar, aumentar a biomassa
da árvore e produzir mais celulose.
A Companhia Suzano de Papel e Celulose,
que tem interesse nessa investigação, doou
R$ 585 mil para reforma e compra de equipamentos
do Laboratório de Genética de
Plantas (rebatizado como Max Feffer, pioneiro
no uso do eucalipto para produção
de celulose e filho do fundador da Suzano,
Leon Feffer). “A produtividade do eucalipto
pode aumentar em 2% a 3 % e será
possível obter mais celulose com menos
processos químicos e custo reduzido”, diz
Carlos Alberto Labate, professor do Departamento
de Genética e coordenador do laboratório.
As primeiras avaliações sobre a
eficiência do processo devem despontar
O vitral no prédio principal virou
logomarca da Esalq e pôsteres
com a imagem espalham-se pela instituição
O
66  ABRIL DE 2004  PESQUISA FAPESP 98
em 2005. A Esalq aguarda autorização
da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança
(CTNBio) para levar as mudas
transgênicas a campos experimentais. O
laboratório tem objetivos de longo prazo:
buscar genes envolvidos na formação
e na qualidade da madeira. Não é novidade
o interesse da iniciativa privada na
massa crítica gerada pela Esalq. Mas as
parcerias, que se concentravam na área
de assistência técnica, andam cada vez
mais sofisticadas. Na pesquisa do eucalipto,
busca-se um produto – a madeira
com mais celulose. E, para chegar a ele,
desenvolve-se pesquisa básica e aplicada.
“As coisas andam juntas”, diz Labate.
“Para alcançar a aplicação é preciso fazer
pesquisa básica e a empresa que nos patrocina
sabe disso. Nossos alunos de iniciação
científica e de doutorado enriquecem
sua formação nesse ambiente.”
escola tem outras parcerias
célebres. A Bolsa de Mercadorias
& Futuros financiou
a construção
do prédio do Centro
de Estudos Avançados
em Economia Aplicada (Cepea),
da Esalq, com a qual mantém um acordo para produção
de indicadores agrícolas. Outro trabalho importante é o
monitoramento de microbacias hidrográficas, coordenado
pelo professor Walter de Paula Lima, do Departamento
de Ciências Florestais, em convênio com
o Instituto de Pesquisas e Estudos Florestais (Ipef). Esse
programa teve início em 1987 e já estabeleceu estações
em vários estados, a pedido de empresas florestais, como
a Votorantim Celulose e Papel, Aracruz, Eucatex e Copebrás.
O objetivo é acompanhar o impacto da exploração
nas bacias atingidas e obter indicadores para subsidiar o
manejo sustentável das florestas. Esse trabalho, que permite
às empresas corrigir agressões ao ambiente, também
produz conhecimento científico. Com informações
colhidas numa área explorada pela Votorantim Celulose
e Papel, os pesquisadores da Esalq e do Ipef concluíram
que a falta de cálcio numa área de reflorestamento de
eucaliptos podia ser resolvida com uma medida simples:
deixando-se a casca das árvores, que é rica em cálcio, no
solo, em vez de levar embora as árvores com casca.“Nosso
trabalho permite às empresas calibrar seus indicadores
ambientais”, diz o professor Walter de Paula Lima.
A mudança no perfil da Escola Luiz de Queiroz reflete,
de certo modo, a transformação do mercado de trabalho
das Ciências Agrárias.Até 20 anos atrás, os agrônomos
formados pela escola tinham o clássico perfil do
extensionista, aquele que visita propriedades e dá assistência
individualizada. Essa formação generalista, hoje,
está longe de ser suficiente. De um lado, a proliferação
de escolas de agronomia tornou a competição entre os
profissionais mais acirrada. De outro, a agricultura mudou
numa velocidade enorme, ganhou produtividade e
escala econômica, e se tornou mais dependente de tecnologia.
Isso exige do profissional uma especialização
muito maior. A Esalq começa a apostar, por exemplo, na
agricultura de precisão, conceito que balança alicerces
da pesquisa agronômica. A agricultura de precisão pontifica
que cada região de uma área de plantio carece de
quantidades peculiares de adubos e corretivos. Essa
idéia, que já existe há muito tempo, tomou forma na Europa,
em especial na Dinamarca, devido a uma limitação
legal da aplicação de fertilizantes. Avaliam-se essas necessidades
medindo a produtividade de cada pedaço do
terreno. Depois, aplica-se mais adubo nas partes que
renderam mais (pois elas tiraram mais nutrientes do
solo). Colheitadeiras ligadas a um sistema de geoprocessamento
por satélite, o GPS, marcam os locais em que a
produção é maior e registram esse desempenho num
mapa, que servirá de guia para a aplicação do adubo.
A agricultura de precisão já produziu economia de até
30% em insumos e vem ganhando espaço nos Estados
Unidos e na Europa.Mas desafia, de certo modo, toda a
pesquisa agronômica, pois ela tira conclusões partindo
do pressuposto de que um terreno contínuo tem necessidades
uniformes de nutrientes.
A Esalq participa do Genoma Funcional do Boi
e sairá à procura de genes envolvidos na
qualidade do couro e na resistência a parasitas
USP70
A
eram acompanhados
por meio de tabelas de
sindicatos patronais e
de caminhoneiros. Os
valores tornaram-se a
principal referência em
modelos matemáticos
para racionalizar roteiros
de cargas agrícolas.
O levantamento é publicado
gratuitamente
num pequeno jornal e
disponibilizado no site
do Esalq-Log, no endereço
eletrônico http://
log.esalq.usp.br. O grupo
trabalha em outras
frentes. Um caso exemplar
foi o modelo criado
para uma empresa
produtora de lírios em
Holambra, interior paulista.
A logística do negócio
envolvia a melhor
hora de importar os
bulbos da Holanda e
cultivá-los em estufa em
quantidade maior para
a demanda atípica das
datas comemorativas.
O modelo matemático,
com 120 mil variáveis e
400 mil restrições, gerou um mapa diário com ordens de
importação e de produção que levou a um aumento
de faturamento de 26% na empresa, sem novos investimentos.
“Nosso desafio é mostrar aos profissionais
de Ciências Agrárias que eles podem gerar ganhos até
com modelos matemáticos muito simples”, afirma Caixeta
Filho.
Aposentado há 20 anos, o professor de Genética Ernesto
Paterniani, hoje ouvidor do campus Luiz de Queroz,
que congrega a Esalq e o Cena, lembra com certa
nostalgia dos tempos em que pesquisa se fazia nos campos
experimentais, não nos laboratórios ou na frente de
computadores. “Corríamos um risco maior”, brinca ele.
“Quando apresentávamos uma novidade a ser aplicada
a um legume ou hortaliça, ela era testada imediatamente
por milhares de agricultores e, se estivéssemos errados,
as reclamações vinham de todo lado.” Paterniani
teme que o futuro da pesquisa agrícola brasileira esteja
ameaçado, devido à limitação de recursos da Embrapa e
à escalada de restrições legais aos produtos biotecnológicos.
Acha que a Esalq deveria calibrar melhor seus esforços
de pesquisa para impedir que isso aconteça. “Se a
pesquisa no Brasil parasse hoje, isso só seria sentido em
alguns anos, quando viesse uma praga nova ou a produtividade
de outros países aumentasse”, afirma ele. Caso o
cenário se confirme, os agricultores sabem onde procurar
ajuda, como os hortelões japoneses que foram bater
à porta do governador Jânio Quadros. •
PESQUISA FAPESP 98  ABRIL DE 2004  67
osé Paulo Molin, professor do Departamento
de Engenharia Rural, lidera a pesquisa em
agricultura de precisão na Esalq, que, com a
ajuda de outros departamentos e instituições,
busca desenvolver uma tecnologia mais barata
e adaptada à realidade nacional. Uma das alternativas
é delimitar pedaços do terreno e
avaliar a quantidade de nutrientes em cada
um deles, sem a necessidade do GPS. Com base nas informações,
criam-se mapas para lançar adubo. “A agricultura
de precisão teve altos e baixos nos Estados Unidos,
devido ao excesso de promessas. Não é uma panacéia,
mas não se pode fechar os olhos para ela”, diz Molin, que
participa da organização do 1º Congresso Brasileiro de
Agricultura de Precisão, programado para maio.
O interesse pela Matemática e Estatística, inaugurado
na Esalq pelo geneticista Friedrich Gustav Brieger
nos anos 1930 e difundida por Francisco Pimentel Gomes,
hoje produz ferramentas na área de Logística. Professores
e alunos do Grupo de Pesquisa e Extensão em
Logística Agroindustrial (Esalq-Log) dedicam-se a criar
sistemas de informação e modelos matemáticos que auxiliem
na gestão dos agronegócios. Liderado por José Vicente
Caixeta Filho, a equipe desenvolveu, em meados
dos anos 1990, o pioneiro Sistema de Informações sobre
Fretes (Sifreca), disponibilizando os preços de fretes de
50 produtos agrícolas praticados em mais de 5 mil rotas.
Até o advento do Sifreca, os preços de frete no Brasil
No Genoma Frango, busca-se a
raiz genética que produz carne
mais proteica e menos gordurosa
AGÊNCIA NATIVA DO MEIO RURAL
EDUARDO CESAR
J
108  JUNHO DE 2004  PESQUISA FAPESP 100
Usina de engenhos
s 111 anos de história da
Escola Politécnica da Universidade
de São Paulo
(Poli-USP) resumem a
trajetória de um país que
soube se modernizar a
passos velozes. São Paulo
ganhou ares cosmopolitas
graças, em boa medida,
à contribuição de pioneiros
como o engenheiro Antonio Francisco de Paula
Souza (1843-1917) ou o construtor de edifícios e palacetes
Francisco de Paula Ramos de Azevedo (1851-
1928), ambos fundadores da Escola Politécnica de São
Paulo, em 1893. No final dos anos 1920, quando governar
virou sinônimo de construir estradas, a instituição
forneceu quadros para riscar um primeiro rascunho
da malha rodoviária que, décadas mais tarde,
substituiria de vez as ferrovias. Engenheiros politécnicos
aventuraram-se até a produzir blindados e grana-
Na série de
reportagens sobre
os 70 anos da
Universidade de São
Paulo,Pesquisa
FAPESP mostra as
soluções tecnológicas
criadas pela Escola
Politécnica da USP,
celeiro de
profissionais que
ajudaram a
modernizar o país
FABRÍCIO MARQUES
USP70
O das quando São Paulo insurgiu-se contra Getúlio Vargas
em 1932. A Escola, que se incorporou à Universidade
de São Paulo em 1934, logo ganharia fama de
celeiro de homens públicos – um punhado de governadores
paulistas passaram por ela.
Entre as décadas de 1950 e 1970, aquela fase em
que a economia brasileira cresceu a taxas de tigre
asiático e carecia de soluções tecnológicas para lastrear
o desenvolvimento, o engenheiro politécnico
viveu talvez a sua fase de ouro. “A gente ia de ônibus
para a faculdade carregando aquela enorme régua T
e chamava atenção. Muito futuro engenheiro arrumou
namorada assim”, lembra o professor Moacyr
Martucci Júnior, presidente da Comissão de Pesquisa
da Poli-USP. O advento da informática provocou
um terremoto na engenharia, que explodiu em novas
especialidades. Da engenharia elétrica, brotou a
engenharia de computação. Das engenharias elétrica
e mecânica surgiu a mecatrônica. Os computadores
levaram a régua T a uma merecida aposentaPESQUISA
FAPESP 100  JUNHO DE 2004  109
FOTOS EDUARDO CESAR
doria e estabeleceram novas bases para o ensino e a
pesquisa da instituição, onde trabalham hoje 495 docentes
e estudam 4,3 mil alunos de graduação e 4 mil
de pós-graduação.
A Poli-USP metamorfoseou-se para manter seu papel
modernizador e continuou criando engenhos capazes de
melhorar o bem-estar da sociedade. É possível citar contribuições
marcantes de pesquisadores e profissionais
formados da instituição em inúmeras áreas. Nos anos
1960, o planejamento na área de transportes no país,
que transformou a engenharia de tráfego em ciência e
foi aplicado na construção das linhas de metrô, também
despontou graças ao trabalho de professores da Poli,
como Íon de Freitas e Antonio Galvão Novaes. Entre
1990 e 1994, a Escola Politécnica da USP foi dirigida
pelo professor Francisco Romeu Landi, diretor-presidente
do Conselho Técnico-Administrativo da FAPESP,
que morreu em abril aos 71 anos.
Se o Brasil hoje dispõe de uma indústria de microeletrônica
e expertise na área de telecomunicações, deve
isso à capacidade da Escola Politécnica em fazer pesquisa
e formar mão-de-obra nessas áreas nos últimos 30
anos. A Escola reivindica a criação do primeiro computador
brasileiro. Batizado de “Patinho Feio”, foi obra de
pesquisadores da área de engenharia elétrica, em 1972.
Passados 30 anos, essa semente produziu uma árvore de
frutos carregados. Embora o Brasil, como vários outros
países, não tenha conseguido desenvolver uma indústria
de computadores competitiva como planejado inicialmente,
os pesquisadores da área de informática da Poli-
A Caverna Digital
simula ambientes
interativos para
pesquisas em
diversas áreas da
engenharia
USP destacaram-se na criação de softwares e na segurança
de redes.
O Laboratório de Arquitetura e Redes de Computadores
da Escola é referência mundial em códigos de criptografia.
Paulo Barreto, pesquisador da Poli e criptologista-
chefe da empresa brasileira Scopus, participou da
criação dos algoritmos adotados para assinatura digital
da Comunidade Européia e do governo norte-americano,
depois de vencer concursos internacionais que definiram
os padrões de segurança. O Laboratório também
criou ambientes seguros para páginas de diversos bancos
na Internet e desenvolveu um sistema de segurança na
arrecadação do Imposto sobre Propriedade de Veículos
Automotores (IPVA), que acabou com as fraudes praticadas
nos computadores do Detran de São Paulo.
Tanque numérico - No campo das telecomunicações,
professores da Poli-USP foram contratados no início
dos anos 1970 pela Telebrás para ajudar a modernizar
as centrais telefônicas brasileiras, que eram analógicas.
A digitalização das centrais ampliou o acesso dos brasileiros
ao telefone e integrou o território nacional. Esse
grupo também desenvolveu, em 1976, o protótipo que
propiciou as ligações de discagem direta internacional.
Parte desses pesquisadores acabou desgarrando-se da
Escola para fundar o Centro de Pesquisas e Desenvolvimento
da Telebrás (CPqD), um dos principais dínamos
da pesquisa brasileira em telecomunicações.
A indústria naval brasileira ganhou consistência a
partir de 1956, depois de um estratégico convênio cele110
 JUNHO DE 2004  PESQUISA FAPESP 100
brado entre a Marinha e a Poli, que deu origem ao Departamento
de Engenharia Naval e Oceânica. O departamento
continua ativo, mas encontrou novas vocações.
Nos últimos quinze anos, fortaleceu os laços com a Petrobras
numa linha de pesquisa que culminou com a
criação, em 2001, de um tanque de provas numérico.
Trata-se de um simulador, dotado de um cluster de 120
microcomputadores pessoais, capaz de projetar modelos
tridimensionais de qualquer coisa: aviões, carros, navios.
“Num tanque numérico, o processamento de informações
é muito mais rápido e é possível realizar simulações
de sistemas bastante complexos”, diz o professor
Hélio Mitio Morishita, chefe do departamento. No caso
da Petrobras, o principal interesse é o desenvolvimento
de sistemas oceânicos, como plataformas de petróleo,
complexos demais para serem testados num tanque de
provas de verdade.
Marinha usou os serviços do tanque numérico
da Poli-USP antes de fazer as
adaptações no porta-aviões São Paulo,
que pertencia à França. Havia dúvidas
se a enorme embarcação caberia no
dique seco do arsenal da Marinha, no
Rio, onde seria reformada. Com
base em imagens e medidas tiradas do porta-aviões e do
dique, o tanque mostrou que era possível, sim, estacionar
o porta-aviões lá dentro – tirando uma fina, é verdade.
Só depois da simulação é que a reforma começou.
Ferramentas de realidade virtual são cada vez mais usadas
em escolas de engenharia. O Laboratório de Sistemas
Integráveis de Politécnica abriga, desde 2000, a Caverna
Digital, um complexo para realidade virtual, que
cria um ambiente interativo por meio de projeções de
imagens múltiplas. Até seis pessoas podem entrar na caverna
ao mesmo tempo e interagir com o mundo simulado
por computador. Além das aplicações nos ramos da
engenharia, a caverna também pode ser usada na medicina,
na astronomia, na produção de jogos interativos.
O elo entre as vocações do passado e as do presente
torna-se mais palpável em alguns departamentos da
Poli-USP, como o de Engenharia de Energia e Automação
Elétricas. Sob o comando do professor José Roberto
Cardoso, o Laboratório de Eletromagnetismo Aplicado
segue trabalhando com a pesquisa em tração elétrica
de ferrovias e de metrôs. “Como participamos da implantação
da primeira linha do metrô de São Paulo, o
conhecimento ficou acumulado”, diz Cardoso. Não há
muito trabalho a fazer em relação a ferrovias, que cada
vez mais perdem importância como meio de transporte.
Mas como várias capitais brasileiras estão construindo
seus metrôs, o laboratório tem sido convocado a ajudar,
fazendo simulações das composições caminhando
na linha em várias velocidades, além da quantidade de
energia necessária para fazer todo o sistema funcionar.
O laboratório também se dedica à pesquisa sobre
interferências eletromagnéticas. Ajudou, por exemplo,
fabricantes de eletrodomésticos a controlar as emissões
eletromagnéticas de seus produtos nos níveis exigidos
internacionalmente. Também auxiliou a Marinha a fazer
um estudo de compatibilidade eletromagnética do
projeto de submarino de propulsão nuclear que está
USP70
Nos primórdios da Escola Politécnica, um dos laboratórios
reunia modelos arquitetônicos de escadas e pórticos
A
PESQUISA FAPESP 100  JUNHO DE 2004  111
sendo desenvolvido no
complexo de Aramar, no
interior paulista. Trata-se
de um estudo sofisticadíssimo,
dada a profusão
de fios e circuitos previstos
para o gigantesco protótipo.
Mas a vida do laboratório
não se resume
a dar suporte para quem
precisa. A pedido da Petrobras,
foi desenvolvido
um motor tubular linear para extração de petróleo que
vai substituir os equipamentos mecânicos conhecidos
como cavalos-de-pau instalados em 9 mil poços terrestres
no país. O motor elétrico tem o dom de aumentar
a vazão dos poços e sofre um desgaste menor, pois, ao
contrário do cavalo-de-pau, não produz atrito com as
paredes do poço.
A Escola envolve-se em pesquisas de caráter teórico
com a mesma disposição com que busca soluções para
problemas prosaicos. No Departamento de Engenharia
de Transportes, testa-se o emprego de um pavimento
composto em que placas de concreto de cimento trabalham
de forma aderida ao concreto asfáltico. A técnica,
trazida nos Estados Unidos, cria uma superfície mais
resistente e ajuda na manutenção de pavimentos com
deficiências estruturais. O Departamento de Engenharia
Metalúrgica e de Materiais, o de maior produção
acadêmica da Escola, desenvolveu
um método capaz
de reciclar a poeira
de minério de ferro que
era descartada e poluía o
ambiente. Essa poeira,
obtida em grande quantidade
no processo de degradação
do minério, entupia
os fornos e era
considerada imprestável.
Num trabalho sobre o
comportamento térmico de materiais, os pesquisadores
da Poli constataram que, ao misturar a poeira de
minério de ferro com carvão, produziam-se pelotas ou
pequenos tijolos que, após um processo de cura, ficavam
duríssimos e podiam ser armazenados. O desperdício
e a poluição acabaram. Hoje as pelotas são
usadas nos fornos como matéria-prima de aço. “A pesquisa
teve grande importância na busca de processos
limpos e não poluentes na metalurgia”, diz o professor
José Deodoro Trani Capocchi, chefe do Departamento
de Engenharia Metalúrgica e de Materiais. São 400 trabalhos
científicos publicados em revistas indexadas a
cada ano. Seus pesquisadores às vezes ajudam a resolver
crimes. A pedido da Polícia Científica de São Paulo,
fazem pareceres sobre a deformação de projéteis ou
o desgaste de outros materiais, capazes de elucidar as
circunstâncias de homicídios ou acidentes.
Ramos de Azevedo
ajudou a moldar a
arquitetura paulista
Na Revolução de 32,
os engenheiros
fizeram blindados
O motor tubular elétrico, desenvolvido a pedido da Petrobras,
vai substituir bombas mecânicas de 9 mil poços de petróleo
112  JUNHO DE 2004  PESQUISA FAPESP 100
Dentro da Politécnica, também funciona o Centro Internacional
de Referência em Reuso da Água (Cirra), vinculado
ao Departamento de Engenharia Hidráulica e Sanitária.
O grupo de pesquisadores da instituição trabalha
em várias frentes, do desenvolvimento de sistemas hidráulicos
que economizem água (como uma caixa de descarga
para vaso sanitário com apenas 3 litros de água) ao
teste de estratégias de reaproveitamento de recursos hídricos,
como o uso de água não tratada na agricultura, em
sistemas de refrigeração de indústrias ou na irrigação de
áreas verdes urbanas. Também ajuda a Agência Nacional
de Águas a formular novas políticas contra o desperdício.
o rol das aplicações práticas, um
pesquisador do Cirra desenhou
um sistema de reaproveitamento
de água que servirá ao terceiro
terminal no Aeroporto de Cumbica,
em Guarulhos, a ser construído
nos próximos anos. Hoje toda
a água usada nos dois terminais do aeroporto, que recebe
14 milhões de passageiros por ano, é retirada de seu
subsolo. A construção de um terceiro terminal vai requerer
uma nova solução, pois o manancial está à beira
do esgotamento e não terá água suficiente. A proposta é
submeter a água servida a um tratamento parcial, utilizando-
a de novo para lavar a pista e resfriar o sistema
de ar condicionado do aeroporto, para citar dois exemplos.
“É possível estabelecer um uso mais parcimonioso
da água a partir de múltiplas estratégias”, diz o professor
Ivanildo Hespanhol, diretor do Cirra.
Como na maioria das carreiras, o campo de conhecimento
da engenharia expandiu-se muito nas últimas
décadas e a Escola Politécnica esforçou-se em abarcar
todos os desdobramentos, criando novos departamentos
e especializações. Mas as mudanças e oscilações do
mercado de trabalho andam tão abruptas que um
ramo da engenharia muito disputado num vestibular
pode ter seu interesse reduzido poucos anos mais tarde,
quando o estudante estiver se formando. Isso já
aconteceu várias vezes. A tradicional engenharia civil,
por exemplo, perdeu força nos anos 1980, a década
perdida em que o Brasil parou de fazer hidrelétricas e
estradas, frustrando uma geração de jovens profissionais.
Hoje a procura pela engenharia civil melhorou.
Apesar do jejum de grandes obras, abriu-se espaço
para os engenheiros, por exemplo, na expansão da
construção civil e da infra-estrutura de saneamento. A
engenharia de telecomunicações viveu o apogeu e a
queda num curtíssimo espaço de tempo. Com as privatizações,
em meados dos anos 1990, a concorrência no
vestibular explodiu, mas houve uma severa retração
em 2000 e 2001, que espantou o interesse dos candidatos.
“Nem a euforia nem a ressaca se justificavam”, diz
Paul Jean Etienne Jeszensky, professor do Departamento
de Engenharia de Telecomunicações e Controle.
“Hoje caminha-se para um equilíbrio no mercado de
trabalho, um cenário que não é tão bom nem tão ruim
como já se imaginou”, afirma.
Tais oscilações são naturais e, exceto pela decepção
que geram nos recém-formados, não trazem conseqüências
profundas. Acontece que o engenheiro politéc-
USP70
N
conta o impacto ecológico que a obra causaria.
Construída no início dos anos 1980, a usina de
Balbina, que abastece Manaus, capital do Amazonas,
é um exemplo de belíssima obra de engenharia
que perpetrou um crime ecológico,
criando um gigantesco lago raso em que espécies
de árvores apodrecem até hoje. “A formação
excessivamente técnica às vezes faz com
que o engenheiro raciocine sem levar em conta
que há gente no processo”, diz o professor
Hélio Morishita, cujo departamento, o de Engenharia
Naval e Oceânica, alterou seu currículo
e hoje exige que seus estudantes façam 24
disciplinas optativas em outras unidades da
Universidade de São Paulo.
escolha dessas disciplinas cabe
ao estudante. O melhor é que
eles tenham contato com a
sociologia, a comunicação, a
filosofia. Alguns resistem e
vão fazer as disciplinas na
Faculdade de Economia
e Administração, que tem mais afinidades
com a engenharia”, diz Morishita. O Departamento de
Engenharia Elétrica promoveu uma alteração semelhante
no currículo. A humanização na formação dos
alunos é um dos objetivos do Poli 2015, um programa
para ajustar a Escola, até o ano de 2015, aos desafios
desse início de século. Entre as metas declaradas do Poli
2015, destacam-se “a competência no relacionamento
humano e na comunicação, a postura ética e o comprometimento
cultural e social com o Brasil”. Sem abrir
mão, é claro, da excelência do ensino.
O futuro da Poli-USP também é virtual. A educação
a distância já é uma realidade. As aulas de 105 disciplinas
são gravadas em vídeo e disponibilizadas na
Internet, assim como o material didático utilizado pelo
professor. Quem faltou à aula pode assisti-la em casa,
na tela do computador. Caso o estudante virtual não
entenda a explanação, pode interagir entrando num
chat e fazendo perguntas. Se for uma dúvida que outro
aluno já teve antes (80% delas são recorrentes), a resposta
está armazenada e vem na hora. Senão, o professor
responde mais tarde, por e-mail. Os cursos e seu material
didático agora começam a ser franqueados a qualquer
pessoa que tenha computador em casa. “A idéia é
disseminar o conhecimento depositado na Poli para
outras faculdades e estudantes de engenharia, é devolver
à sociedade, da forma mais ampla possível, o investimento
que ela fez nessa escola”, diz o professor Wilson
Vicente Ruggiero. Se der certo, a escola que nasceu vinculada
à elite – os fundadores Ramos de Azevedo e
Paula Souza tiveram de ir à Europa para se formar –
terá feito um belo acerto de contas com o passado. •
PESQUISA FAPESP 100  JUNHO DE 2004  113
nico é formado, antes de tudo, para se adaptar a novas
situações, para estar pronto a solucionar problemas que
sequer podem ser imaginados hoje. “A Escola fornece
uma excelente base. A bagagem é do aluno”, diz Jeszensky.
“Preparamos profissionais para a tomada de decisões,
profissionais que estão sempre prontos a aprender
coisas novas”, diz Moacyr Martucci, presidente da
Comissão de Pesquisa.Assim como os engenheiros civis
frustrados dos anos 1980 fizeram carreiras reluzentes
dentro e fora da engenharia – o mercado financeiro, por
exemplo, abasteceu-se fartamente desses profissionais –,
a turma das telecomunicações será absorvida.Mas também
existem cursos que não conhecem crise. O de
engenharia de computação oferece duas turmas de 40
alunos a cada vestibular. Uma dessas turmas faz um
curso nos moldes tradicionais. A outra tem uma grade
curricular diferente, em que teoria e prática têm o mesmo
peso. Os módulos se alternam a cada quadrimestre
– ora o estudante dedica-se a disciplinas teóricas, ora
faz um estágio numa empresa, que a própria Escola se
encarrega de arrumar para os alunos. “O engenheiro sai
formado com uma base teórica forte e também com
uma notável experiência profissional”, diz o professor
Wilson Vicente Ruggiero, do Departamento de Engenharia
de Computação e Sistemas Digitais.
A Escola ensaia uma mudança conceitual na formação
de seus alunos. Existe uma demanda do mercado de
trabalho por profissionais com uma bagagem mais humanística.
O engenheiro de hoje precisa levar em conta
variáveis que eram relegadas antigamente. Já vai longe o
tempo em que se projetava uma hidrelétrica sem levar em
O Centro de Referência em Reuso de Água busca
soluções para combater o desperdício
A“
58  JULHO DE 2004  PESQUISA FAPESP 101
Omoldeda
excelência
acadêmica
Universidade de São Paulo (USP)
tornou-se o grande paradigma brasileiro
em excelência acadêmica
graças a um modelo semeado
pioneiramente na Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas
(FFLCH). A USP foi
criada em 1934, incorporando
notáveis escolas superiores
que já formavam
profissionais da elite paulista brasileira, como a Faculdade
de Medicina, a de Direito do largo de São
Francisco e a Politécnica. Mas na Faculdade de Filosofia,
nascida em conjunto com a universidade para
servir de amálgama interdisciplinar entre as unidades
já existentes, aplicaram-se conceitos que moldariam
o ensino superior nacional, como a indissociabilidade
do ensino e da pesquisa, o rigor científico como
método e o investimento na pesquisa básica, aquele
conhecimento desinteressado que empurra as fronteiras
do saber e produz contribuições surpreendentes.
Até a criação da USP, os catedráticos da Faculdade
de Medicina, por exemplo, eram grandes clínicos e
Na série de reportagens sobre
os 70 anos da Universidade
de São Paulo, a trajetória da
Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas,
laboratório de idéias que
transformou o ensino superior
FABRÍCIO MARQUES
USP70
A
PESQUISA FAPESP 101  JULHO DE 2004  59
SDI-SERVIÇO DE DIVULGAÇÃO / FFLCH
Estudantes no prédio
da Geografia e da
História, departamentos
que permaneceram
na faculdade após
a reforma universitária
60  JULHO DE 2004  PESQUISA FAPESP 101
cirurgiões que, na maior parte do tempo, salvavam vidas.
Só alguns poucos faziam pesquisa de qualidade. A
Politécnica e a Faculdade de Direito abasteciam o país de
engenheiros e advogados, mas seus professores dividiam-
se entre a formação dos alunos e suas atividades
profissionais particulares. Com honrosas exceções, destacavam-
se mais por transmitir um saber tecnológico do
que por produzir conhecimentos básicos. “Até o advento
da Faculdade de Filosofia e da USP, não era muito claro
o limite entre o cientista e o erudito, entre o pesquisador
e o diletante”, diz o professor de sociologia Sedi
Hirano, atual diretor da FFLCH. ”Até mesmo a idéia de
que a atividade científica é uma vocação, uma profissão
com dedicação exclusiva, só se consolidou no país a partir
da experiência da Filosofia”, afirma.
oje a FFLCH tem 10.235 estudantes
de graduação e 2.117 de pós-graduação
e congrega 11 departamentos
da área de Humanidades: Letras
Clássicas, Letras Modernas, Letras
Orientais, Lingüística, Teoria Literária,
Filosofia,História, Geografia,
Antropologia, Sociologia e Ciência Política.Mas, em seus
primórdios, praticamente todo o conhecimento cabia
dentro da instituição. Ela surgiu em 1934 com um nome
abrangente, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
(FFCL), reunindo também os núcleos de Ciências Naturais,
Química, Física e Matemática. Era uma “universidade
em miniatura”, como definiu o sociólogo Florestan
Fernandes (1920-1995) no livro A questão da USP (1984).
Sob os auspícios da oligarquia paulista, a nascente Faculdade
de Filosofia foi beber diretamente da fonte européia.
O primeiro diretor da instituição, Theodoro Augusto Ramos,
matemático da Escola Politécnica, foi encarregado
de contratar dezenas de professores da França, da Itália,
da Alemanha e de Portugal. As missões estrangeiras
trouxeram hábitos que marcariam a cultura universitária
do país, como a renovação anual dos cursos e o planejamento
rigoroso das aulas. Havia professores já consagrados
e jovens talentos que construíram reluzentes
carreiras acadêmicas nas décadas seguintes.
A maioria veio da França, como o antropólogo Claude
Lévi-Strauss, o historiador econômico Fernand Braudel,
o sociólogo Roger Bastide ou os professores de filosofia
Martial Guéroult e Jean Maugüé, um grande
influenciador do estudo da psicologia. A Itália mandou,
entre outros, seu grande poeta Giuseppe Ungaretti e o físico
Gleb Wataghin, russo de nascimento, um dos responsáveis
pelo estabelecimento da física experimental
como atividade científica no Brasil. A Alemanha compartilhou
com o Brasil sua base teórica em química, enviando
professores como Heinrich Rheinboldt. O português
era idioma raríssimo nas salas de aulas, ministradas, em
geral, em francês ou italiano. Parecia uma missão colonizadora,
mas a realidade era mais complexa que as aparências.
O fato é que a sociedade e a comunidade acadêmica
de São Paulo mostraram-se maduras para absorver
a contribuição européia. O escritor modernista Mário
de Andrade, por exemplo, associou-se a Claude Lévi-
Strauss na fundação da Sociedade de Etnografia e Folclore.
Logo os mestres europeus estariam cercados de
discípulos brasileiros, como o professor francês de geografia
humana Pierre Monbeig e o estudante Caio Prado
Júnior, ou o físico ítalo-russo Gleb Wataghin e os jovens
Mário Schenberg e Marcelo Damy. Alguns mestres
europeus passaram poucos anos no Brasil, outros permaneceriam
até meados dos anos 1960 – inaugurando
uma tradição de intercâmbio internacional de professores
e estudantes que é forte até hoje (a faculdade mantém
40 convênios com instituições no exterior). Mas,
como estava previsto, os docentes estrangeiros cederiam
espaço paulatinamente para os brasileiros que ajudaram
a formar, caso do físico Oscar Sala, do geneticista Crodowaldo
Pavan, do sociólogo Florestan Fernandes ou do
geógrafo Aziz Ab’Saber.
USP70
H
FOTOS ARGUS DOCUMENTAÇÃO / CCS / USP
PESQUISA FAPESP 101  JULHO DE 2004  61
Ousado e grandiloqüente, o projeto da Faculdade de
Filosofia sofreu, é certo, turbulências na decolagem.Nos
idos de 1936 e 1937, chegou-se a discutir o fechamento
da instituição, uma vez que os aspirantes a uma vaga na
USP continuavam tomando o caminho da Faculdade de
Medicina, da Escola Politécnica e da Faculdade de Direito,
provavelmente assustados com a exótica experiência
em curso na Faculdade de Filosofia. Nos dois primeiros
anos de existência da instituição, era moda entre a elite
paulistana freqüentar as aulas da Filosofia, para melhorar
o quórum das salas. Deve-se à engenhosidade do
educador, sociólogo e historiador Fernando de Azevedo,
que fora diretor da Instrução Pública de São Paulo e viria
a comandar a faculdade nos anos 1940, a solução que
resgatou a instituição das dificuldades iniciais. Em vez
de formar a elite, como faziam as unidades da USP mais
antigas, a nova faculdade voltou-se para a classe média.
Um decreto determinou que professores de escolas primárias
que passassem no vestibular dos cursos da Filosofia
e tivessem sempre nota superior a 7 poderiam afastar-
se das salas de aulas e continuariam a receber o
salário de docente enquanto estudavam, artifício conhecido
como comissionamento. Dessa forma, a faculdade
encheu-se de ex-normalistas para formar bons professores
secundários. “Foi graças a esse decreto que eu pude
me formar”, recorda-se o historiador José Sebastião Witter,
professor-emérito da FFLCH. Em 1953, Witter formara-
se numa Escola Normal de Mogi das Cruzes e, depois
de trabalhar cinco anos como professor primário,
ingressou na Faculdade de Filosofia em 1958. “A situação
do ensino era completamente diferente. As escolas
normais davam uma excelente formação e tinham mestres
competentíssimos”, diz Witter. A vocação de formar
professores mantém-se até hoje, sobretudo em carreiras
como letras, história e geografia, embora a figura do comissionamento
tenha sido abandonada.
As décadas de 1950 e 60 foram a época de ouro da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, convertida no
centro do pensamento brasileiro. Em 1941, a efervescência
ganhou um endereço: a Faculdade de Filosofia, que
vagara por diversos prédios, alguns emprestados, fixouse
no lendário edifício da rua Maria Antônia.Nos corre-
No dia 3 de outubro
de 1968, a batalha entre
estudantes da Faculdade
de Filosofia e adeptos
do Comando de Caça
aos Comunistas instalados
na Universidade Mackenzie
deixou um aluno morto
e causou a depredação
do prédio da
rua Maria Antônia
62  JULHO DE 2004  PESQUISA FAPESP 101
dores, cruzavam-se as grandes referências acadêmicas
como Antonio Candido, que se tornaria o patrono da
teoria literária no Brasil, o sociólogo Florestan Fernandes,
além de Sérgio Buarque de Holanda, o historiador
que criou o conceito do homem cordial e se incorporou
à faculdade no final dos anos 1950. Orbitavam ao redor
de dona Floripes, funcionária que anotava recados para
todos na portaria da Maria Antônia. A época é marcada
pelos trabalhos sobre relações raciais no Brasil, liderados
por Florestan, Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso,
que refutaram a idéia do paraíso racial brasileiro,
ou do livro Os parceiros do Rio Bonito, de Antonio Candido,
um clássico da sociologia brasileira a respeito dos
caipiras marginalizados do interior paulista.
ambém foi nessa fase que a faculdade
transformou-se num caldeirão de
efervescência política. Vicejava entre
professores e alunos o que ficaria conhecido
como “pensamento radical”,
com base no qual os intelectuais, na
maioria de orientação marxista, viamse
numa esfera à parte dos políticos e do povo e reivindicavam
para si a missão de comandar as mudanças da
sociedade.O primeiro grande movimento ocorreu entre
1955 e 1962, quando a Faculdade de Filosofia foi o principal
pólo de debates e críticas à privatista reforma do
ensino proposta pelo político Carlos Lacerda. O bastião
em defesa da escola pública era o prédio da rua Maria
Antônia, Florestan Fernandes à frente. Após a deposição
de João Goulart, os militares encontraram na Faculdade
de Filosofia, com seus professores e alunos com forte inclinação
esquerdista, um aguerrido foco de desafio à ditadura.
“A faculdade se distanciou muito daquilo que as
oligarquias pensaram para ela”, disse, num recente discurso
nas comemorações dos 70 anos da faculdade, o
professor Antonio Candido. “Em 1964, todas as congregações
da USP apoiaram o golpe militar,menos a Faculdade
de Filosofia. E não porque era de esquerda, mas
porque era contra a opressão.”
O resultado desse embate entrou para os livros de
história: no dia 3 de outubro de 1968, uma batalha campal
entre lideranças estudantis da Faculdade de Filosofia
e seguidores da organização direitista Comando de Caça
aos Comunistas instalados na vizinha Universidade Mackenzie
terminou com a morte de um estudante secundarista,
três universitários baleados, dezenas de feridos e
USP70
Os professores
europeus
que fundaram a
faculdade (ao lado) e
a primeira turma de
alunos, formada em
1936 (página ao lado).
Nos primeiros anos, a
instituição não atraiu
um contingente
expressivo de alunos.
A solução foi
oferecer vantagens
para que professores
primários fizessem
curso superior
Em 17 de março de 2004, a comemoracão
dos 70 anos da FFLCH reuniu os mestres
Octavio Ianni (que morreria três meses
depois), Alfredo Bosi, Antonio Candido,
Sedi Hirano e Marilena Chauí
T AE
sima linha e seguiu como um pólo importante do pensamento
acadêmico.
Recentemente, foram aprovados vários projetos temáticos
da FAPESP, sob coordenação dos professores da
Faculdade de Filosofia, tratando de temas como a filosofia
do século 17, filosofia e história da ciência e moral, política
e direito. A faculdade que se notabilizou pela efervescência
política dos anos 1960 forneceu quadros para o
poder após a redemocratização. Nos anos 1990, com a
ascensão do professor de sociologia cassado pelo AI-5, Fernando
Henrique Cardoso, à Presidência da República,
egressos da FFLCH ocuparam cargos importantes, desde
o Ministério da Cultura (Francisco Weffort) à formulação
de políticas de educação. A circunstância se repete,
com outros nomes, naturalmente, no governo Lula – do
porta-voz André Singer ao presidente do Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Glauco Arbix.
A produção dos mais de 300 alunos de graduação
com projetos de iniciação científica abastece uma coleção
de livros, batizada de Primeiros Estudos, editada
pela própria faculdade. “São trabalhos de qualidade,
que orgulham a faculdade”, diz o presidente da
Comissão de Pesquisa,Moacyr Novaes. O primeiro volume,
publicado em 2001, reúne uma coleção de textos
sobre as políticas de industrialização em São Paulo
nos anos 1990, coordenado pelo professor de sociologia
Glauco Arbix. O segundo, lançado em 2003, discorre
sobre o pensamento de Jean-Paul Sartre. Dos 24
programas de pós-graduação, 16 têm ótimo conceito,
sendo que três têm a nota máxima da avaliação da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pesssoal de Nível
Superior (Capes): Literatura Brasileira, Semiótica e
Lingüística Geral, e Sociologia. O rigor metodológico
e a curiosidade científica semeados pelas missões européias,
como se vê, não perderam o fôlego ao longo
dos 70 anos de existência da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da USP. •
PESQUISA FAPESP 101  JULHO DE 2004  63
a depredação da sede da FFLCH.Mas o maior golpe viria
em seguida, com a aposentadoria compulsória, com
base no Ato Institucional 5, das vozes mais prestigiadas
da faculdade, como José Arthur Giannotti, Emília Viotti
da Costa, Octavio Ianni, Florestan Fernandes, Fernando
Henrique Cardoso, entre outros. A FFLCH sofreu uma
mudança de perfil. Com a reforma universitária, perdeu
os últimos departamentos ainda ligados à área de ciências,
fixando-se nas humanidades. Também foi expulsa
do ambiente integrador da Maria Antônia para dispersar
alunos e professores num conjunto de prédios com
41 mil metros quadrados na Cidade Universitária. Destituída
de suas cabeças mais famosas e distante do modelo
original, a FFLCH mostrou, nos anos 1970 e 80, que
continuava capaz de produzir massa crítica de primeirís-
SDI-SERVIÇO DE DIVULGAÇÃO / FFLCH
AE
54  AGOSTO DE 2004  PESQUISA FAPESP 102
O Brasil que
as Arcadas
vislumbraram
Faculdade de Direito do largo de São
Francisco, a mais antiga das unidades
que há sete décadas deram origem
à Universidade de São Paulo
(USP), preserva os sinais de vigor
que a transformaram em paradigma
do ensino superior já
nos tempos em que o Brasil
era um império dos trópicos
e a cidade de São Paulo
não passava de burgo bucólico e provinciano. No
último ranking do Provão, a faculdade aparecia em
primeiro lugar, seguida por escolas jurídicas de Minas
Gerais, do Paraná, do Espírito Santo, da Bahia, do Rio
de Janeiro, de Brasília e da cidade paulista de Franca.
Pode-se afirmar que todas essas escolas alcançaram excelência
mirando-se no exemplo da instituição paulistana.
Também é certo que elas aliviaram de responsabilidades
históricas a “velha e sempre nova”Academia,
como gostam de tratá-la seus bacharéis.
Aberta em 1828 nas instalações de um antigo convento
franciscano no centro de São Paulo, a faculdade
por muito tempo representou uma das escassas
Na série de reportagens sobre
os 70 anos da Universidade
de São Paulo, a marca
da Faculdade de Direito
do largo de São Francisco,
formadora das elites
no Império e na República
FABRÍCIO MARQUES
USP70
A
MIGUEL BOYAYAN
56  AGOSTO DE 2004  PESQUISA FAPESP 102
opções da oligarquia nacional para ilustrar seus filhos.
Alunos de toda parte aportavam em São Paulo. Dos 33
inscritos na primeira turma, só nove moravam na capital;
oito vieram do rico interior agrícola da província,
dez do Rio, quatro de Minas Gerais e dois da Bahia. Essas
levas pioneiras de estudantes seriam as primeiras a
acalentar o sonho cosmopolita da futura metrópole. A
cidade fora escolhida para acolher o curso jurídico com
o argumento de que não oferecia diversões a distrair os
estudantes e o custo de vida era baixo. Isso não durou
muito tempo. Entre as décadas de 1830 e 1870 – antes
que a riqueza do café e o advento das ferrovias transformassem
a cidade – São Paulo foi um território de estudantes
e a presença deles estimulou a construção dos
primeiros hotéis, teatros e casas de diversão.
faculdade foi criada, pouco mais de cinco
anos após a proclamação da Independência,
com a missão de forjar uma elite de
homens públicos capaz de gerir a nação
– a Universidade de Coimbra passara
a hostilizar os aspirantes a bacharéis
oriundos da colônia desgarrada. Se a
meta era preparar os “homens hábeis” que comandariam
o país, se a intenção era conferir base intelectual à
elite governante, pode-se dizer que o objetivo rendeu
frutos fartos e duradouros. Até pelo menos a Segunda
Guerra Mundial, a Academia foi o principal pólo de formação
de quadros para a política, a Justiça e o jornalismo
no país. Em março de 1868, o vapor Santa Maria desembarcou
no porto de Santos trazendo dois estudantes
baianos mal saídos da adolescência que marcariam a trajetória
da faculdade e a história do Brasil. Um deles era
Ruy Barbosa, o jurista que moldaria a Constituição republicana,
o poliglota que representaria o Brasil na Conferência
de Haia. O outro era o poeta Castro Alves – que
morreria de tuberculose três anos mais tarde, mas formou
o trio de poetas românticos com os colegas Fagundes
Varella e Álvares de Azevedo. O jovem fluminense
Juca Paranhos também estudou lá. Filho de um ministro
do Império, o aluno Juca, o lendário barão do Rio Branco,
seguiria carreira política e diplomática e teria um papel
na delimitação das fronteiras brasileiras no sul, no
extremo norte e no extremo oeste do país. No final do
século 19, estima-se que sete em cada dez deputados
brasileiros haviam passado pelas Arcadas – outro apelido
da faculdade, referência aos sustentáculos da construção
de taipa do convento franciscano, reconstituídos
no novo prédio, erguido na década de 1930.
A República Velha (1889-1930) foi, antes de tudo,
uma República de bacharéis do largo de São Francisco.
Oito presidentes dessa fase formaram-se nas Arcadas:
USP70
O poeta Castro Alves, num jornal
abolicionista que circulou na Academia
Ruy Barbosa (o segundo da dir. para a esq.),
na foto de Militão de Azevedo, em 1879
REPRODUÇÕES: ARCADAS - HISTÓRIA DA FACULDADE DE DIREITO DO LARGO DE SÃO FRANCISCO
A
PESQUISA FAPESP 102  AGOSTO DE 2004  57
Prudente de Moraes, Campos
Salles, Afonso Pena,
Rodrigues Alves, Delfim
Moreira, Venceslau Brás,
Arthur Bernardes e Washington
Luís. Também sairiam
da instituição 45 governadores
da Província e
do Estado de São Paulo.
No início do século 20, a
Academia passaria a dividir
com outras instituições,
como a Faculdade de
Medicina e a Escola Politécnica,
a primazia de formar
a elite de São Paulo.
Igualmente, os bacharéis
foram cedendo espaço na
gestão pública para a tecnocracia
(as demandas do
país tornavam-se mais complexas)
e para os militares
(seus antagonistas, que chamavam
os políticos de “casacas”).
Curiosamente, a
faculdade só voltou a produzir
outro chefe da nação
– mesmo assim, em experiência
fugaz – nos anos
1960: foi na militância estudantil
das Arcadas que Jânio Quadros ensaiou sua
retórica. A massificação do ensino superior não ofuscou
a importância da faculdade, que continuou a atrair
a elite dos candidatos no vestibular e é um raríssimo
exemplo de aprovação maciça nos exames da seção
paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O
país hoje tem mais de 700 escolas de direito e 400 mil
advogados.
A efervescência do largo de São Francisco deixou
marcas até onde menos se imagina. O sanduíche bauru
ganhou esse nome porque era o preferido do estudante
de direito Casemiro Pinto Neto no restaurante Ponto
Chic, centro de São Paulo. Casemiro, conhecido como
Bauru – a cidade paulista onde nasceu –, cedeu o apelido
ao sanduíche. O bordão “é pique, é pique, é hora, é hora,
é hora, rá-tim-bum”, incorporado no Brasil ao Parabéns
a você, é uma colagem de bordões dos pândegos estudantes
das Arcadas da década de 1930.“É pique, é pique”
era uma saudação ao estudante Ubirajara Martins, conhecido
como “pic-pic” porque vivia com uma tesourinha
aparando a barba e o bigode pontiagudo. “É hora, é
hora” era um grito de guerra de botequim.Nos bares, os
estudantes eram obrigados a aguardar meia hora por
uma nova rodada de cerveja – era o tempo necessário
para a bebida refrigerar em barras de gelo. Quando dava
o tempo, eles gritavam: “É meia hora, é hora, é hora, é
Estudantes das Arcadas visitam, em 1908,
o barão do Rio Branco (ao centro), ex-aluno
O novo prédio, erguido nos anos 1930,
refez as arcadas do velho convento
58  AGOSTO DE 2004  PESQUISA FAPESP 102
hora”. “Rá-tim-bum” , por
incrível que pareça, referese
a um rajá indiano chamado
Timbum, ou coisa
parecida, que visitou a faculdade
– e cativou os estudantes
com a sonoridade
de seu nome. O amontoado
de bordões ecoava nas
mesas do restaurante Ponto
Chic, com um formato
um pouco diferente do que
se conhece hoje: “Pic-pic,
pic-pic; meia hora, é hora,
é hora, é hora; rá, já, tim,
bum”. Como isso foi parar
no Parabéns a você? “Os estudantes
costumavam ser
convidados a animar e prestigiar
festas de aniversário.
E desfiavam seus hinos”,
conta o atual diretor da faculdade,
Eduardo Marchi,
de 44 anos, que relembrou
a curiosidade em seu discurso
de posse, dois anos
atrás. Em 1934, a faculdade
deixou de ser uma escola
federal, foi incorporada à
Universidade de São Paulo
– mas manteve-se ciosa das tradições. As tentativas de
transferir a sede para a Cidade Universitária foram rechaçadas
– os alunos chegaram a arrancar a pedra fundamental
do que seria o novo prédio.
defesa do ideal da liberdade é uma marca
da instituição – e também a origem de um
paradoxo histórico. Os estudantes do
largo de São Francisco e seu combativo
Centro Acadêmico 11 de Agosto engajaram-
se em boa parte das lutas democráticas,
do abolicionismo à
Revolução Constitucionalista de 1932, da liberdade de
imprensa ao movimento pelos direitos humanos, da
oposição ao Estado Novo à campanha pelas eleições diretas
e pela Constituinte com participação popular, nos
anos 1980. O alemão Julio Frank e o italiano Líbero Badaró,
ativistas liberais e professores do curso preparatório
para a faculdade no Primeiro Reinado, tornaram-se
ícones das primeiras gerações de alunos. “Mas a origem
elitista transformava boa parte dos alunos inflamados
em ardentes defensores da ordem quando alçavam carreira
na política e na magistratura”, diz a historiadora Ana
Luiza Martins, autora do livro Arcadas – História da Faculdade
de Direito do largo de São Francisco, em parceria
com a também historiadora Heloisa Barbuy.
Na história recente, bacharéis do largo de São Francisco
tiveram papel importante na redemocratização do
país – Ulysses Guimarães, o artífice da Constituição de
1988, e o ex-senador e governador André Franco Montoro
são egressos da instituição. O corpo docente também
teve nomes como Goffredo da Silva Telles, que, em 1977,
ousou exigir a volta do Estado de direito na comemoração
dos 150 anos dos cursos jurídicos do país. Mas alguns
professores emprestaram seu brilho acadêmico a
causas liberticidas, caso dos ex-diretores da faculdade
Luiz Antonio da Gama e Silva, ministro da Justiça do
marechal Costa e Silva e redator do Ato Institucional 5,
e Alfredo Buzaid, que sucedeu Gama e Silva no governo
do general Emílio Médici, o mais opressivo do período
militar. Independentemente das divergências
doutrinárias ou ideológicas, os professores sempre cultivaram
os civilizados preceitos do respeito e da tolerância.
“Há muito se diz que a congregação da faculdade é
o lugar onde se aprende a divergir polidamente”, diz o
professor aposentado e ex-diretor da faculdade Dalmo
de Abreu Dallari, ativista dos direitos humanos desde os
anos 1970.
A presença de alunos e mestres da faculdade no cenário
jurídico sempre foi marcante – Clóvis Bevilacqua,
João Mendes Júnior, Teixeira de Freitas e Vicente Rao
são exemplos. O Código Civil brasileiro, criado em 1916
USP
FOTOS: RÔMULO FIALDINI/ ARCADAS - HISTÓRIA DA FACULDADE DE DIREITO DO LARGO DE SÃO FRANCISCO
No vitral das escadarias, alegoria
inspirada em pintura de Rafael
A
70
O que também atrapalha
a pesquisa é a pouca
adesão dos docentes da Faculdade
de Direito ao regime
de dedicação exclusiva.
Apenas 10% dos 130 professores
trabalham em
tempo integral. A tradição
brasileira é a dos docentes
com pés fincados no mercado
de trabalho – juízes,
promotores, donos de escritórios
de advocacia –,
capazes de mostrar a realidade
da profissão aos estudantes.
A dupla militância
é uma realidade desde que
a faculdade foi fundada.
Na década de 1860, apenas
dois terços dos 17 professores
encontravam-se sempre
em São Paulo – magistrados
ou políticos, vários deles
estavam desempenhando
funções de ministro do
Império ou de governador
de províncias. Em países
como os Estados Unidos e
a Alemanha, um dos alicerces
mais importantes da
pesquisa jurídica é a dedicação integral dos docentes.
É certo que as Arcadas estão empenhadas em transformar
progressivamente esse panorama.Cresce o número
de convênios com instituições estrangeiras, como a
Università degli Studi di Roma “La Sapienza” e Universtà
Statale di Milano, na Itália; Université de Lyon II, na
França; Universidade de Lagos, na Nigéria; University of
Texas, Austin, nos EUA, entre outras. Até dez anos atrás,
praticamente não havia estudantes de graduação realizando
projetos de iniciação científica. Hoje 2% dos alunos
já têm bolsas.
A partir de 2005, os estudantes de graduação serão
obrigados a produzir uma tese para obter o grau de
bacharel. A idéia da chamada Tese de Láurea, inspirada
no ensino superior italiano, busca, entre outras finalidades,
combater um efeito nocivo que o mercado de
trabalho tenta impor à faculdade. Os estudantes hoje
são convidados a cumprir estágios em escritórios de advocacia
cada vez mais precocemente, alguns até no segundo
ano de curso – comprometendo o tempo de
estudo. A obrigação de fazer a tese vai reforçar o vínculo
dos alunos com a instituição, tornando a formação
menos prática e mais reflexiva. Continua valendo
uma máxima que todos os dirigentes das Arcadas repetiram
orgulhosamente: o objetivo da Faculdade de Direito
da USP é formar juristas, não bacharéis. •
PESQUISA FAPESP 102  AGOSTO DE 2004  59
sob a presidência de um aluno das Arcadas, Venceslau
Brás, foi reformado sob a coordenação de um jurista forjado
na instituição, Miguel Reale. Na década de 1970,
com a criação dos cursos de pós-graduação, a faculdade
assumiu a missão de produzir pesquisa.Não é uma tarefa
simples – e nessa dificuldade a instituição tem a companhia
dos demais cursos do país.
oa parte da pesquisa em direito no
Brasil e na faculdade ainda se debruça
sobre a análise de doutrinas e de
questões de jurisprudência, sem uma
pesquisa de campo ou base filosófica
ou sociológica”, diz o professor
Antonio Luis Chaves Camargo, presidente
da Comissão de Pesquisa da faculdade. Eduardo
Bittar, professor associado do Departamento de Filosofia
e Teoria Geral do Direito – e um estudioso da questão
da pesquisa jurídica –, complementa: “As pesquisas empíricas,
os estudos de caso, as pesquisas documentais, as
análises sociológicas ainda são esteios negligenciados
pela cultura jurídica nacional”. Não deixa de ser curioso,
pois o direito compreende uma forte atividade intelectual,
como se pode perceber no vigoroso mercado de livros
jurídicos (muitos deles escritos por docentes do largo
de São Francisco).
B “
O vermelho do Salão Nobre homenageia d. Pedro II,
referência ao papel da faculdade durante o Império
A receita da qualidade
Na série de reportagens
sobre os 70 anos da
Universidade de São Paulo,
a movimentada trajetória
da Faculdade de Ciências
Farmacêuticas,
que soube superar crises
e consolidou-se como
endereço de pesquisa
FABRÍCIO MARQUES
USP70
A faculdade hoje: laboratórios
renovados e 96% dos professores
com dedicação integral
PESQUISA FAPESP 103  SETEMBRO DE 2004  53
FOTOS EDUARDO CESAR
54  SETEMBRO DE 2004  PESQUISA FAPESP 103
ustiça se faça à Faculdade de Ciências Farmacêuticas
da Universidade de São Paulo:
em quase 106 anos de existência, a instituição
exibiu uma inesgotável capacidade de
superar dificuldades e responder a desafios.
Fundada em 12 de outubro de 1898
como Escola Livre de Pharmacia de São
Paulo, manteve-se de pé em seus primórdios
graças à abnegação dos fundadores.
Médicos ou membros da Sociedade Pharmacêutica
Paulista, eles davam aulas de
graça – ou recebendo quantias simbólicas
– até que o orçamento da instituição saísse do vermelho.
A criação da escola estava prevista havia mais de 20
anos, mas foi graças ao grupo, liderado pelo médico
fluminense Bráulio Gomes e o farmacêutico Pedro
Baptista de Andrade, que a idéia vicejou, fazendo surgir
o quarto curso de farmácia do país e o primeiro de
São Paulo. Logo apareceram novas demandas. O governo
da província delegou à escola a tarefa de submeter
a exames aspirantes a dentistas e parteiras “enquanto
não existissem no estado cursos especiais de arte dentária
e de partos”. Pois em 1902 a instituição chamou
para si a tarefa de formar esses profissionais, tornandose
Escola de Pharmacia, Odontologia e Obstetrícia. As
duas novas carreiras se desmembrariam ao longo do
tempo – a Obstetrícia desgarrou-se em 1911 e a Odontologia
em 1962.
A excelência da Faculdade de Ciências Farmacêuticas
se explica, de certo modo, por sua capacidade de se
reinventar. Por muito pouco, o curso não fechou as
portas na década de 1920. A concorrência com outras
escolas de farmácia e um escândalo que cassou o credenciamento
federal da faculdade fizeram com que os
alunos debandassem e professores pedissem demissão,
desinteressados de trabalhar numa instituição sem licença
para funcionar. Os bens da escola foram seqüestrados,
e, em 1932, o médico e anatomista Benedicto
Montenegro foi designado interventor. No ano seguinte,
o governo federal restabeleceu o credenciamento.
Montenegro foi personagem-chave na reabilitação da
faculdade. Colocou-a para funcionar e, algum tempo
depois, convenceu o governo paulista a incorporá-la ao
projeto da Universidade de São Paulo. Em 1934, a Faculdade
de Pharmacia e Odontologia de São Paulo deixou
de existir. Em seu lugar foi criada a Faculdade de
Pharmacia e Odontologia da Universidade de São Paulo.
Na prática, alunos e professores integraram-se aos
USP70
O prédio da rua Três Rios, na bucólica São Paulo de
1927: uma crise por pouco não fechou a escola
J
FOTOS ARQUIVO FACULDADE DE CIÊNCIAS FARMACÊUTICAS DA USP
PESQUISA FAPESP 103  SETEMBRO DE 2004  55
Miritello Santoro, presidente da Comissão de Pesquisa
da faculdade.
Os quatro departamentos dedicam-se a linhas de
pesquisa inovadoras no país, cuja relevância também
pode ser medida pela aplicação prática que terão na
vida e na saúde dos brasileiros. A equipe do professor
Jorge Mancini Filho, do Departamento de Alimentos e
Nutrição Experimental, estuda desde o final dos anos
1980 substâncias antioxidantes naturais encontradas
em alimentos como o dendê, a castanha do caju, a castanha-
do-pará, o alecrim ou o orégano. O objetivo, a
princípio, era testar a utilização dessa matéria-prima
em substituição a antioxidantes sintéticos, usados para
conservar alimentos e suspeitos de fazer mal à saúde
humana. A pesquisa foi ganhando importância ao longo
dos anos 1990, enquanto acumulavam-se evidências
de que os antioxidantes podem ajudar a prevenir doenças.
Mostrou-se, por exemplo, que é possível enriquecer
alimentos, como o pescado, com substâncias antioxidantes
– dependendo da dieta que se dê ao peixe. Com
isso, a carne é enriquecida nutricionalmente e demora
mais para deteriorar.
O professor Franco Lajolo, estudioso dos alimentos
funcionais, aqueles que têm propriedades terapêuticas
Aula com o professor Henrique Tastaldi, na década
de 1950: vinculada à USP, a faculdade floresceu
quadros da USP, assim como o prédio na rua Três Rios,
no bairro do Bom Retiro, centro de São Paulo, foi desapropriado
e incorporado ao patrimônio da universidade.
Garantia-se a continuidade do projeto acalentado
pela Sociedade Pharmacêutica Paulista de formar
“moços capazes de trabalhar em química, habilitados
para a indústria e com coragem e conhecimentos bastantes
para se enfrentarem com as dificuldades de análises
sérias e importantes”, como propôs um editorial
de maio de 1895 da Revista Pharmacêutica, órgão oficial
da entidade.
Nos últimos 70 anos, período em que sua trajetória
vinculou-se a à USP, a Faculdade de Ciências Farmacêuticas
não se limitou a formar mão-de-obra. Consolidou-
se como referência nacional em ensino, pesquisa
e pós-graduação. Com 800 alunos de graduação, 250
de mestrado e 200 de doutorado, a instituição conta
hoje com 80 docentes – 98% doutores e 96% em regime
de dedicação integral à docência e à pesquisa. Em
2003 teve uma produção de 102 artigos em periódicos
publicados no país e 91 no exterior. “O objetivo é publicar
cada vez mais e formar recursos humanos.Muitos
dos nossos mestres e doutores vão lecionar em outras
universidades”, diz a professora Maria Inês Rocha
áreas, como na de fármacos com atividade contra a doença
de Chagas, no diagnóstico de cisticercose, uma parasitose,
ou em marcadores genéticos de diagnóstico.
“Nos últimos 15 anos, investimentos na renovação de
laboratórios, feitos pelo Banco Interamericano de
Desenvolvimento, a FAPESP e o CNPq, deram lastro
ao salto qualitativo”, diz o professor Jorge Mancini, exdiretor
da faculdade.
A Faculdade de Ciências Farmacêuticas foi um
exemplo de integração à Universidade de São Paulo.Ao
contrário de outras unidades que já existiam antes do
advento da USP, como as faculdades de Medicina e de
Direito, trocou sem reclamações seu endereço tradicional,
no bairro do Bom Retiro, por uma área de 80 mil
metros quadrados na lamacenta Cidade Universitária do
ano de 1966. “Apesar das dificuldades, o campus aparecia
como o lugar ideal para o desenvolvimento de atividades,
sem ruídos, contrastando com as salas de aula da
rua Três Rios, constantemente perturbadas pelo tráfego
pesado de caminhões”, registrou a professora catedrática
Maria Aparecida Pourchet-Campos em seu lie
preventivas, produziu contribuições
importantes, por exemplo, para
a compreensão do metabolismo
das frutas depois de colhidas e ajudou
a desvendar os processos bioquímicos
que as tornam doces e
macias. A professora Silvia Cozzolino
lidera pesquisas sobre a disponibilidade
de ferro em alimentos e
seu uso nutricional. Uma delas foi
um estudo sobre ingestão média
diária de alguns minerais em dietas
brasileiras, conforme região, faixa
etária e condição social. Os menores
valores de ingestão de ferro
estavam nas dietas de idosos de casas
de repouso de São Paulo, com
5,4 miligramas por dia (mg/dia), e
na dieta de uma população de baixa
renda de Santa Catarina, com
6,4 mg/dia. O ideal é o consumo
diário por adulto de 15 mg/dia.
o Departamento
de Análises
Clínicas e Toxicológicas,
destacam-se
trabalhos como
os da professora
Ana Campa, que, em parceria
com o Instituto de Química
da USP, ajudou a desenvolver uma
tecnologia para diagnósticos clínicos
baseados na utilização de reações
que emitem luz e permitem mensurar o nível de
várias enzimas de interesse laboratorial. A professora
Maria Inês Rocha Miritello Santoro, do Departamento
de Farmácia, pesquisa, há mais de uma década, a separação
enantiomérica empregando a cromatografia líquida
de alta eficiência com fase quiral. Trata-se de
uma técnica de controle de qualidade de medicamentos
capaz de separar moléculas que apresentam os mesmos
grupamentos químicos como radicais de um átomo
de carbono – porém com uma configuração em que
uma é a imagem espelhada da outra. A distinção dos
dois tipos de molécula é importante porque, normalmente,
apenas uma delas apresenta efeito terapêutico.
Em alguns casos, a outra molécula, além de não ter
efeito farmacêutico, pode apresentar propriedades tóxicas.
Com a técnica, pode-se separar e quantificar os
dois tipos de compostos.
Tais exemplos são apenas uma amostra das pesquisas
feitas no conjunto de blocos de concreto, situado na
avenida Linneu Prestes (ex-diretor da instituição), na
Cidade Universitária. Há trabalhos em muitas outras
56  SETEMBRO DE 2004  PESQUISA FAPESP 103
USP
N
70
FOTOS ARQUIVO FACULDADE DE CIÊNCIAS FARMACÊUTICAS DA USP
sede também foi palco de eventos
históricos, como a premiação, com
o título de doutor honoris causa, de
Alexander Fleming, o pai da penicilina,
em visita ao Brasil no ano
de 1954. Os estudantes foram em
comitiva à estação de trem no
bairro do Brás recepcionar Fleming
e ficaram surpresos com a
concentração de populares. Mas o
pai da penicilina passou despercebido
– o povo aguardava a chegada
da Seleção Brasileira de Futebol,
liderada pelo craque Leônidas
da Silva.
ambém nos anos
1960, aposentaram-
se professores
que haviam moldado
a faculdade
após o ingresso na
USP. São nomes
como Carlos Alberto Liberalli,
Henrique Tastaldi,Aristóteles Orsini
e Walter Leser. A transformação
da instituição seria coroada na virada
para a década de 1970, com a
reforma universitária. A Faculdade
de Farmácia e Bioquímica passou a
denominar-se Faculdade de Ciências
Farmacêuticas, e deflagrou-se
uma reestruturação que deu origem
aos quatro atuais departamentos:
Farmácia, Alimentos e
Nutrição Experimental, Análises
Clínicas e Toxicológicas e Tecnologia
Bioquímico-Farmacêutica. “A
reforma permitiu uma necessária
reorganização do currículo”, diz Jorge Mancini. “A pesquisa,
antes da reforma, não era intensa como hoje”,
afirma o professor.
A imagem do farmacêutico como uma espécie de
médico dos momentos de aflição tornou-se definitivamente
coisa do passado. Se no início do século 20 o
apelo da profissão firmava-se na profusão de anúncios
de remédios nos bondes – “Salvou-o o Rhum creosotado”
–, nos anos 1960 o mercado de trabalho expandiuse
geometricamente, com a instalação do parque de
indústrias de medicamentos no país. A maioria dos
farmacêuticos-bioquímicos sai da faculdade para trabalhar
em fábricas de remédios.As áreas de análises clínicas
e da indústria de alimentos também atraem profissionais
– num mercado de trabalho que continua a
mudar. Nos últimos quatro anos, o currículo da Faculdade
de Ciências Farmacêuticas da USP ganhou 21 novas
disciplinas – temas momentosos como Alimentos
Geneticamente Modificados,Medicamentos Genéricos
e Bioequivalência ou Toxicologia Forense. A instituição,
como se vê, está sempre se reinventando. •
PESQUISA FAPESP 103  SETEMBRO DE 2004  57
vro A vida da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da
Universidade de São Paulo (1984).
Essa época foi um divisor de águas na trajetória da
instituição. A troca de endereços teve, é certo, um impacto
simbólico. Ficou para trás o prédio erguido nas
várzeas despovoadas do Bom Retiro no início do século
20. A construção original continua de pé e, tombada
pelo patrimônio histórico, abriga oficinas culturais do
governo do Estado de São Paulo. Os antigos alunos
guardam memórias prosaicas do edifício de 136 janelas.
Como a imagem solene do professor siciliano Quintino
Mingoja. “Ele exigia que os alunos ficassem de pé quando
entrava na sala de aula”, afirma Paulo Minami, professor
aposentado do Departamento de Análises Clínicas
e Toxicológicas, organizador do acervo histórico da
faculdade. “Mingoja se aposentou e depois voltou à faculdade
para dar aulas. Ficou muito magoado no primeiro
dia de aula, quando uma turma desavisada permaneceu
sentada quando ele entrou na sala.” No prédio
da rua Três Rios os universitários cortejavam as moças
do Colégio Santa Ignês, do outro lado da rua. A antiga
T
Cenas da escola em 1908:
exame oral num anfiteatro (acima),
aula prática de química industrial
(abaixo), laboratórios
de odontologia e de física (à esq.).
FOTOS EDUARDO CESAR
O mural de Carlos Magano,
feito nos anos 1950
e recém-restaurado,
é um símbolo da faculdade
PESQUISA FAPESP 105  NOVEMBRO DE 2004  57
USP70
Trincheira
do ensino
público
Na série de reportagens
sobre os 70 anos
da Universidade de São Paulo,
Pesquisa FAPESP
mostra a contribuição
da Faculdade de Educação
por uma escola
de qualidade e para todos
FABRÍCIO MARQUES
58  NOVEMBRO DE 2004  PESQUISA FAPESP 105
trajetória da Faculdade de Educação
da Universidade de São Paulo (USP)
pode ser narrada em três etapas, e
todas elas são marcadas pelo compromisso
com a construção de
uma escola pública, leiga e acessível
a todos. O embrião surgiu
no início da década de
1930, na Escola Normal Secundária
da Praça da República,
no centro paulistano, onde hoje funciona a Secretaria
de Educação do Estado de São Paulo (o prédio,
por sinal, é um símbolo do ensino leigo: foi erguido nos
primeiros anos da República com verba e terreno que o
finado Império reservara à construção de uma catedral).
Numa época em que quase a metade da população infantil
estava fora da escola e a maioria dos professores
primários levava na bagagem apenas quatro anos de instrução
primária, um grupo de docentes da Escola Normal
da Praça começou a articular a fundação de uma pioneira
instituição de ensino superior de pedagogia. A
idéia dos educadores Antônio Sampaio Dória, Manuel
Lourenço Filho e Fernando de Azevedo também tinha
um cunho nacionalista, uma vez que era gigantesco o
fosso entre o grau educacional dos brasileiros nativos e
o dos imigrantes europeus. Desse esforço surge, em 1933,
o Instituto de Educação, centro de nível superior vinculado
à Escola Normal. Teve vida efêmera como instituição
independente. Em 1934 incorpora-se à nascente
Universidade de São Paulo e, em 1938, transforma-se em
Seção de Pedagogia da Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras (FFCL), incumbido, principalmente, da tarefa de
dar formação pedagógica a professores secundários de
diversas disciplinas formados pela USP.
Um segundo momento importante para a história
da faculdade remonta ao ano de 1956, quando o Ministério
da Educação e Cultura (MEC) e a USP assinam um
convênio e montam, dentro da Cidade Universitária, o
Centro Regional de Pesquisas Educacionais (CRPE) de
São Paulo.Tratava-se de um braço de um órgão do MEC,
o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (Inep), voltado
para pesquisas e treinamento de professores. Seu
idealizador era o filósofo da educação Anísio Teixeira,
cujas idéias nortearam uma notável renovação pedagógica
em meados do século 20 e deram lastro ao início da
ampliação do acesso à escola aos brasileiros mais pobres.
O CRPE partilhava professores com a Seção de Pedagogia
da FFCL, mas as instituições seguiam independentes.
Cada uma delas tinha sua Escola de Aplicação: a do
CRPE, apenas de ensino básico; a da USP, a Escola Fidelino
de Figueiredo, de ensino ginasial e médio.
O dia 1º de janeiro de 1970 marca a terceira etapa da
trajetória, com a fundação da Faculdade de Educação
nos moldes em que ela funciona hoje. A unidade é criada,
na esteira da reforma universitária de 1968, com a
emancipação da Seção de Pedagogia da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras, e sua fusão com o CRPE,
que cede suas instalações e acaba extinto. Da FFCL, a
Faculdade de Educação herdou professores formados
sob a influência das missões estrangeiras que fizeram a
USP e inspirados pela Campanha em Defesa da Escola
Pública, liderada pelo sociólogo Florestan Fernandes no
início dos anos 1960. Do CRPE, recebeu sua sede atual
(parcialmente demolida e reconstruída, por problemas
de movimentação de solo), educadores que formaram
gerações de pesquisadores, como Roque Spencer Maciel
e Laerte Ramos de Carvalho, além da Escola de Aplicação
(aquela que pertencia à Faculdade de Filosofia, laboratório
de experiências inovadoras, foi sumariamente
fechada pela ditadura).
“As preocupações dos criadores do Instituto de Educação
e do CRPE ajudam a explicar a nossa tradição de
pesquisa, historicamente voltada para a expansão e a
melhoria do ensino público”, diz Celso de Rui Beisiegel,
professor de Sociologia da Educação, que começou a
carreira como pesquisador do CRPE e ajudou a fundar
a unidade nos anos 70. Com cerca de 800 alunos de
pedagogia, 600 de pós-graduação, 8 mil matrículas na
licenciatura e 107 docentes, a instituição segue como
referência em pesquisas educacionais. Alguns exemplos
de projetos apoiados pela FAPESP ilustram a diversidade
temática e o espectro de preocupações que orientam
os pesquisadores da faculdade. Um dessas linhas de
investigação é a formação de professores e a análise de
aprendizado das ciências. “Temos um grupo robusto,
que também produz e avalia material didático”, diz a
professora Myriam Krasilchik, pesquisadora no campo
do ensino da biologia, que foi diretora da Faculdade de
Educação e vice-reitora da USP. Nos últimos tempos,
Myriam envolveu-se num projeto de educação ambiental
em duas cidades do interior paulista.
A professora Anna Maria Pessoa de Carvalho trabalha
com duas equipes de professores de colégios públicos
em busca de experiências inovadoras no ensino da física
tanto nas escolas fundamental e média. Um dos objetivos
dos grupos é levantar os tipos de experiências que
possibilitam o aprendizado do aluno. Foram produzidos
15 vídeos com imagens de sala de aula, capazes de
sinalizar algumas experiências didáticas que ajudam o
aluno a aprender. Outro resultado prático foi o guia para
professores Termodinâmica - Um ensino por investigação,
com práticas metodológicas
desenvolvidas pelo grupo de
professores do ensino médio. A
grande conclusão é que o aprendizado
de física depende de atividades
em sala de aula capazes
de provocar argumentações e de
permitir aos alunos o levantamento
e o teste de hipóteses.
Numa experiência sobre dilatação,
por exemplo, os professores
colocam uma bexiga no
bocal de um recipiente de vidro
e aquecem sua base. A bexiga
USP70
Cenas dos anos 1960:
professoras estagiárias
no prédio do CRPE
(alto); mãe de aluno
ajudando em aula de
ciências no Colégio de
Aplicação (à esq.);
professoras em
treinamento e alunos
em aula de linguagem
(à dir.)
A
PESQUISA FAPESP 105  NOVEMBRO DE 2004  59
tora Unesp. As obras didáticas são obtidas de fontes diversas,
como sebos e bibliotecas, com o objetivo de ajudar
a compreender a dinâmica da educação no passado.
Se o livro estiver usado, com exercícios respondidos,
mais rica é essa compreensão. Numa obra antiga os pesquisadores
encontraram até fragmentos de papel com
cola para prova, combustível importante para o estudo
dos usos e costumes das escolas.
o acervo há raridades publicadas
no século 19, algumas delas obtidas
na França, onde se imprimia
boa parte dos livros usados nas escolas
do Brasil Império. “Minha
vida é freqüentar sebos”, diz a professora
Circe. “Quando os sebos
ainda não sabem que a gente está
interessada, sai barato”, ela explica.Uma limitação para a
pesquisa é que os livros didáticos distribuídos pelo governo,
hoje, têm de ser reaproveitados, inibindo a interação
dos alunos. “Tentamos preencher essa lacuna recolhendo
cadernos”, afirma a professora.
É possível citar outras contribuições da Faculdade de
Educação, como o trabalho teórico da professora Marília
Spósito sobre os jovens, em especial sobre políticas
públicas para a juventude no Brasil nos últimos anos.
infla – o que serve de ponto de partida para a discussão
do fenômeno. “Os alunos debatem e algum deles acaba
sugerindo que a bexiga inchou porque o ar quente, afinal,
sobe. Em seguida, vira-se o recipiente de cabeça para
baixo e a bexiga continua inflada. O professor conduz as
discussões rumo à real explicação, que é a dilatação do
ar, e os alunos constroem seus conhecimentos formulando
hipóteses e colocando-as à prova”, diz a professora
Anna. Outra iniciativa com bons efeitos é a discussão
de textos originais de cientistas, em que os alunos percebem
a importância do trabalho de equipe, da curiosidade
e da perseverança nas descobertas. “A maioria das
pessoas não se lembra de nada do que aprendeu nas aulas
de física”, diz Anna. “Alguns dizem que gostavam das
atividades de laboratório, mas também não conseguem
lembrar exatamente do que gostaram. É um sinal de que
o ensino tradicional de física está falido.” O esforço em
desenvolver uma nova metodologia esbarra sobretudo
na parca carga horária da disciplina nas escolas públicas.
“Com uma aula por semana, dá para fazer muito pouco”,
afirma.
A Faculdade de Educação
tem forte tradição também no
estudo da história da educação.
Se a corrente hegemônica, até
os anos 1970, voltava-se para a
história das idéias pedagógicas
e o perfil dos teóricos, dos anos
80 para cá o foco recaiu sobre
novos protagonistas: professores
e alunos.“A década de 1980,
de modo geral, marca uma mudança
na pesquisa da faculdade,
agora mais voltada para o
chão da escola e para a pluralidade
de orientações teóricas”,
explica a professora Marília
Spósito, presidente da Comissão
de Pesquisa.
Um exemplo dessa vertente
é o esforço para levantar a
trajetória do livro didático no
Brasil. Sob a liderança da professora
Circe Bittencourt, o
Centro de Memória da Educação,
vinculado à faculdade,
vem construindo um acervo
de obras didáticas, material escolar
e depoimentos orais de
professores e alunos. Uma tese
sobre o tema defendida pela
professora Circe em 1993, “Livro
didático: conhecimento histórico”,
será publicada em livro
nos próximos meses pela Edi-
USP
N
70
60  NOVEMBRO DE 2004  PESQUISA FAPESP 105
Ou as pesquisas da professora Tizuko Morchida Kishimoto
no Laboratório de Brinquedos e Materiais Pedagógicos.
Ao avaliar o potencial dos brinquedos em atividades
pedagógicas, o laboratório busca colher subsídios
para a formação de professores de educação infantil. A
professora Selma Garrido Pimenta, atual diretora da
faculdade, desenvolve um trabalho que se tornou referência
sobre a formação de professores em todo o país.
Um dos frutos dessa linha de pesquisa foi um projeto
que coordenou, voltado à investigação do processo de
produção do conhecimento dos professores, desenvolvido
entre 1996 e 2000 em duas escolas públicas da periferia
de São Paulo. O combustível da pesquisa foi a
reflexão dos próprios professores sobre as práticas pedagógicas,
uma metodologia qualitativa inovadora.
Destacam-se, ainda, as pesquisas dos professores Celso
Beisiegel sobre políticas públicas e as conseqüências
da expansão do ensino. Sua contribuição mais recente
foi a pesquisa Construção de banco de dados sobre experiências
de professores da universidade pública na administração
da educação pública das últimas décadas.Orientados
por Beisiegel e pelo professor Romualdo Portela de Oliveira,
também da faculdade, sete alunos percorreram
vários estados do Brasil coletando e registrando informações
sobre as atividades de professores em universidades
públicas na elaboração e na execução de políticas
educacionais. Levantaram documentos, entrevistaram
educadores e promoveram seminários com a participação
desses professores a fim de entender o trabalho que
desenvolviam e debater a sua importância.
A instituição é conhecida como formadora de quadros.
Secretária da Educação do Estado de São Paulo por
quase oito anos, a pedagoga Rose Neubauer saiu dos
quadros docentes da instituição. Outra professora, Lisete
Arelaro, foi Secretária de Educação do Município de
Diadema. Num passado recente, a faculdade forneceu
uma vice-reitora para a USP, Myriam Krasilchik, e dois
pró-reitores de graduação, Celso Beisiegel e Sonia Penin,
ainda em exercício. “A faculdade justifica sua presença
dentro da Universidade de São Paulo”, orgulha-se o professor
Beisiegel. •
PESQUISA FAPESP 105  NOVEMBRO DE 2004  61
Acima, autoridades
na inauguração do CRPE,
em 1956. Abaixo,
funcionário embala publicações
pedagógicas
para enviar a professores
60  DEZEMBRO DE 2004  PESQUISA FAPESP 106
USP70
Aconquista
doLeste
Na última reportagem
da série sobre os 70 anos
da Universidade de
São Paulo,Pesquisa FAPESP
mostra o inovador
projeto pedagógico que,
a partir de 2005, terá espaço
num novo campus da
capital paulista
FABRÍCIO MARQUES
Universidade de São Paulo (USP)
sempre se preocupou em renovar os
compromissos de excelência acadêmica
e de expansão do ensino público
estabelecidos em sua fundação,
em 1934. No início buscou
agrupar no campus na Zona
Oeste de São Paulo, na antiga
fazenda Butantan, todos os
seus institutos e faculdades,
numa estratégia para assegurar a qualidade homogênea
– só as tradicionais faculdades de Medicina e de Direito,
que já existiam antes da fundação da USP, resistiram em
seus endereços originais. Já consolidada, decidiu deitar
raízes também em outras regiões do estado.Hoje possui
campi nos municípios de Bauru, Piracicaba, Pirassununga,
Ribeirão Preto e São Carlos. Pois agora, aos 70 anos
de idade, a universidade dá mais um salto ambicioso.
Em março de 2005 começam as aulas da USP Leste, um
novo campus que está sendo erguido às margens do rio
Tietê e da rodovia Ayrton Senna, que liga São Paulo a Jacareí.
Com cursos diferentes dos oferecidos na Cidade
Universitária e um projeto acadêmico inovador, em que
as fronteiras entre as carreiras são mais flexíveis, a instituição
também é um marco na Zona Leste de São Paulo,
região habitada por 4,5 milhões de pessoas, escassamente
assistida pelo ensino superior público. No vestibular
de 2005, a Escola de Artes, Ciências e Humanidades –
nome ainda provisório da nova instituição – vai oferecer
1.020 vagas nos cursos de Sistemas de Informação,Ciências
da Natureza (Licenciatura), Obstetrícia, Gerontologia,
Ciências da Atividade Física,Marketing, Lazer e Turismo,
Gestão de Políticas Públicas, Gestão Ambiental e
Tecnologia Têxtil. Os alunos serão divididos em turmas
de 60 pessoas, distribuídas pelos períodos matutino, vespertino
e noturno. No canteiro de obras, operários estão
concluindo o primeiro prédio, que abrigará os alunos
do ciclo básico, primeiro ano comum a todas as
carreiras.“Trata-se da obra de maior repercussão durante
as comemorações dos 70 anos da USP”, disse o reitor
da USP, Adolpho José Melfi.
O projeto demorou 30 meses para amadurecer e envolveu
o trabalho de mais de uma centena de docentes,
sob a coordenação-geral de Celso de Barros Gomes, che-
A
PESQUISA FAPESP 106  DEZEMBRO DE 2004  61
DIVULGAÇÃO
A concepção artística mostra como
o campus da USP Leste estará
em 2006, quando todos os prédios
estiverem construídos
fe de gabinete da Reitoria, e de Myriam Krasilchick,
professora da Faculdade de Educação e presidente da
Comissão Central da USP Leste no tocante ao projeto
acadêmico. O processo de escolha dos novos cursos envolveu
consultas a estudantes de escolas públicas e privadas
de São Paulo. Quase seis mil alunos foram convidados
a opinar. A consulta mostrou a preferência por
profissões tradicionais, como medicina e engenharia,
mas outras carreiras puderam ser identificadas, como
informática, marketing e esportes. A definição, contudo,
foi moldada por uma limitação jurídica. O Estatuto
da USP proíbe que haja duplicidade de cursos numa
mesma cidade. Ou seja, nenhuma carreira na Zona
Oeste poderia ser oferecida na Zona Leste. Depois de
muita discussão, em que todas as unidades da USP foram
ouvidas para evitar que os cursos da Zona Leste
abortassem projetos em andamento na universidade,
chegou-se ao conjunto de dez carreiras. Algumas chegam
a tangenciar outras já oferecidas, mas os currículos
não se chocam.
O desenvolvimento do projeto acadêmico é um dos
capítulos mais vibrantes na trajetória da futura instituição.
Embora as carreiras pertençam a áreas distintas do
conhecimento, todas comungarão de um mesmo ciclo
básico, o primeiro ano comum a todos os alunos ingressantes
na Escola de Artes,Ciências e Humanidades. O diálogo
entre os cursos, estimulado pela ausência de uma
rígida estrutura de departamentos, também terá espaço
na formação de núcleos de pesquisa interdisciplinares,
como o Laboratório de Estudos e Pesquisas sobre Complexidade
e Cidadania, o Observatório de Políticas Públicas
e o Observatório de Pesquisas Integradas sobre
Meio Ambiente Urbano, para citar alguns exemplos.
O currículo do ciclo básico gira em torno de três eixos.
Parte dele compreende matérias introdutórias, mas
com propostas interdisciplinares, como “Sociedades complexas,
multiculturalismo e direitos” ou “Psicologia, educação
e temas contemporâneos”. “Essa diversidade deverá
ser encarada como oportunidade exemplar para a
construção de novas fronteiras na organização do co62
 DEZEMBRO DE 2004  PESQUISA FAPESP 106
nhecimento”, diz a professora Myriam. Outro
quinhão da carga horária é específico de cada
carreira. Isso para evitar a frustração dos calouros
com o excesso de disciplinas genéricas
e introdutórias no primeiro ano, que é um
dos fatores responsáveis pela evasão escolar.
E um terceiro pedaço da carga horária segue
uma experiência inovadora. É composto
por disciplinas em que o desafio do estudante
é dar solução a problemas concretos. “Promover
a iniciação acadêmica e científica por
meio da resolução de problemas é uma das
abordagens inovadoras surgidas nos últimos
anos, que vem ganhando espaço em algumas
das principais universidades européias e
norte-americanas”, diz a professora Myriam.
“A intenção é criar um ambiente para dar autonomia
intelectual aos alunos que acabam
de sair da escola média”, ela afirma.
rocessos acadêmicos de resolução
de problemas envolvem
os alunos de várias maneiras.
Primeiro eles discutem o
problema, que não tem resposta
simples. Depois utilizam
seus conhecimentos e
experiências na tentativa de achar uma saída.
Levantam hipóteses, investigam-nas e, por
fim, preparam um trabalho coletivo com
possíveis soluções. “A proposta estimula o
protagonismo dos estudantes na compreensão
da complexidade dos fenômenos e promove
a troca e a cooperação entre docentes,
estudantes e comunidade”, diz Valéria Amorim Arantes,
professora da Faculdade de Educação e coordenadora
do ciclo básico, que se inspirou em modelos como o da
Universidade de Aalborg, na Dinamarca, onde esteve recentemente.
Outra característica do projeto acadêmico é
a utilização de recursos multimídia e da informática. Os
cursos e atividades terão como suporte um site que reunirá
seus conteúdos, a exemplo de uma experiência de
sucesso realizada pela Escola Politécnica da USP.
Toda essa proposta foi submetida a um importante
crivo, o das inscrições para o vestibular. Quase 6 mil candidatos,
na imensa maioria moradores da própria Zona
Leste, inscreveram-se no primeiro vestibular e vão concorrer
às 1.020 vagas oferecidas nas dez carreiras. O curso
mais concorrido é o de Sistemas de Informação (9,47
candidatos por vaga), seguido pelos de Marketing, Lazer
e Turismo, Obstetrícia e Tecnologia Têxtil. É certo que,
entre os dez cursos menos concorridos no vestibular da
Fuvest, cinco pertencem à USP Zona Leste: Ciências da
Natureza (uma licenciatura para formação de professores),
Ciências da Atividade Física, Gerontologia, Gestão
de Políticas Públicas e Gestão Ambiental – com concorrência
entre 2,17 e 4,44 candidatos por vaga. O saldo,
contudo, é considerado positivo. Projetava-se um contingente
de candidatos menor, na casa dos 4 mil a 5 mil
inscritos. Como os cursos são novos e desconhecidos, é
natural que não atraiam multidões. No final da década
de 1930, logo depois de a USP ser fundada, as salas de
aula da recém-criada Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras (FFCL) ficavam literalmente às moscas, pois os
candidatos ao vestibular continuavam concorrendo às
tradicionais Faculdade de Medicina, Escola Politécnica e
Faculdade de Direito, incorporadas à estrutura da nova
universidade.
O interesse de docentes por trabalhar na nova instituição
é animador. Os editais dos processos seletivos
USP70
No canteiro de obras, operários
concluem as instalações que,
em março de 2005, receberão
a primeira turma de 1.020 alunos
P
PESQUISA FAPESP 106  DEZEMBRO DE 2004  63
tadas para abrigar o campus: o Parque do
Carmo, no bairro de Itaquera, e uma área na
zona do Parque Ecológico do Tietê. O Parque
do Carmo foi logo descartado por razões
ambientais. A segunda área também tinha
empecilhos ecológicos, mas eles puderam ser
contornados. O plano inicial era erguer a
unidade numa gleba de mata fechada, de 1
milhão de metros quadrados, paralela ao leito
do rio. O conjunto arquitetônico, idealizado
pelo professor Sylvio Sawaia, era ambicioso.
Previa a construção de quatro prédios
interligados e dispostos como lados de um
quadrado. O miolo do quadrilátero formaria
uma enorme praça. Outros prédios seriam
erguidos acompanhando o leito do Tietê e,
numa gleba próxima, de 250 mil metros quadrados,
haveria um centro esportivo.O plano
desmoronou quando os órgãos ambientais
vetaram o uso da área de mata fechada. Para
salvar o projeto, inverteu-se a estratégia. A
gleba à beira do Tietê vai ser aproveitada como
um laboratório ambiental a céu aberto. E
o conjunto de prédios foi transferido para a
segunda gleba, aquela que abrigaria o centro
esportivo, onde não há entraves ecológicos.
Trata-se de um aterro.
O projeto arquitetônico foi simplificado.
Para não perder tempo, optou-se por começar
as obras erguendo uma construção idêntica
a um dos prédios do campus da USP de
São Carlos. É ali que, em março de 2005, começará
a funcionar o ciclo básico. No primeiro
ano estarão prontos esse prédio, com
5.200 metros quadrados, uma guarita, um
posto de segurança, o centro de apoio técnico,
de 600 metros quadrados, dotado de salas
para docentes e funcionários, além de
uma construção destinada ao serviço de refeições.
As obras continuarão em 2005, com a construção
de outro prédio com 17 mil metros quadrados, de
uma biblioteca com 7,2 mil metros quadrados e de instalações
destinadas a serviços. Em 2006 um terceiro
prédio será entregue, com 17 mil metros quadrados.
O acesso será feito pela rodovia Ayrton Senna, ou pela
avenida Assis Ribeiro, no bairro de Ermelino Matarazzo,
que delimita o novo campus. Outro meio de acesso é
uma linha da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos
(CPTM), que tem duas estações nas proximidades.
No futuro será construída uma nova estação de trem destinada
à USP Leste. A integração da nova instituição com
a comunidade também está prevista. De um lado, continuará
funcionando numa casa do bairro o Núcleo de
Apoio Social, Cultural e Educacional (Nasce), um centro
de extensão universitária com atividades voltadas para a
população, que já vem oferecendo cursos desde abril de
2004. Também funcionarão nas imediações do campus
uma escola estadual de ensino fundamental e médio e
outra municipal, de educação infantil. •
que preencherão as 69 vagas necessárias para o primeiro
ano estão em andamento. Isso envolveu a formação
de 31 bancas examinadoras.Mas, antes que esse processo
fosse aberto, fez-se uma consulta a professores da
USP sobre o interesse de se transferirem para a Zona
Leste. Dezoito foram pré-selecionados e, ao final do
processo, dez professores tiveram seus pedidos de transferência
aceitos. “A idéia inicial era de evitar que esse
aproveitamento superasse 20% das vagas”, diz o coordenador-
geral Celso de Barros Gomes. “É uma instituição
nova e é importante que tenhamos também material
humano novo para erguê-la.” Da mesma forma, os atuais
funcionários tiveram a chance de se candidatar aos 86
empregos que serão criados na Zona Leste, no primeiro
ano de funcionamento. Despontaram 208 interessados.
O trabalho da Comissão Central é avaliar quais se encaixam
nos cargos para, depois, abrir concursos para
preencher os que sobrarem.
O plano de implantar a USP Leste começou a ser
gestado em 2002. A princípio, duas áreas foram cogi-
FOTOS EDUARDO CESAR50  MARÇO DE 2004  PESQUISA FAPESP 97
Monumento à saúde
rnaldo Vieira de Carvalho (1867-1920),
cirurgião e ginecologista, e Enéas de Carvalho
Aguiar (1902-1958), administrador
hospitalar, morreram prematuramente,
ambos na casa dos 50 anos de idade, e
puderam vislumbrar apenas o nascimento
das instituições que fundaram:
respectivamente, a Faculdade de Medicina
da Universidade de São Paulo
(FMUSP), criada em 1913, e seu
braço hospitalar, o Hospital das Clínicas de São Paulo (HC),
inaugurado em 1944.A memória desses dois médicos é lembrada
todos os dias, até mesmo por pessoas que mal sabem quem
eles foram. Dr. Arnaldo e dr. Enéas são os nomes de duas movimentadas
avenidas paralelas, na Zona Oeste de São Paulo, que
comportam o quadrilátero formado pela FMUSP, o HC e seus
diversos institutos. Trata-se do mais famoso e produtivo endereço
de atendimento de saúde, ensino e pesquisa aplicados à
medicina do Brasil.
Paulistas e paulistanos buscam o atendimento do Hospital
das Clínicas em casos de emergência e também em aflições
corriqueiras, atraídos pela eficiência de seus médicos, um porto
seguro em meio às deficiências da saúde pública. Brasileiros
de todos os cantos do país, portadores de doenças raras ou tratadas
com ferramentas experimentais, acostumaram-se a viajar
milhares de quilômetros para se tratar no HC – muitos desconfiam
da idéia de que existem centros de excelência em
quase todas as regiões.Maior complexo hospitalar da América
Latina, o HC fez, só no ano passado, 1,5 milhão de atendimentos
ambulatoriais e 550 mil de emergência. Seus 2.492 leitos receberam
60 mil pacientes. Foram realizadas 45 mil cirurgias,
entre as quais 500 transplantes e 6 milhões de exames laboratoriais.
Como faculdade e hospital formam uma teia complexa
e indistinta, o acompanhamento da notável diversidade de pacientes
faz a diferença na formação de novos médicos e pesquisadores.
Atualmente, a FMUSP abriga 1.422 estudantes de graduação
(nota A no Provão) e 2.055 de mestrado e doutorado
(70% dos programas de pós-graduação da FMUSP foram
muito bem avaliados pela Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (Capes).
A tradição de grande escola de medicina remonta as décadas de
1940 e 1950 – quando um professor catedrático era tão respeitado
quanto o governador do Estado e os alunos, submetidos a disciplina
férrea, iam às aulas de terno e gravata. Hoje, o perfil dos 344
docentes da FMUSP mudou bastante.“O campo de conhecimen-
A A trajetória da Faculdade
de Medicina da Universidade
de São Paulo (USP),
um dos mais vigorosos
pólos de assistência à saúde
e de pesquisa científica
do país, inaugura
a série de reportagens
que Pesquisa FAPESP
publicará a respeito dos 70
anos de fundação dessa
universidade. As próximas
edições apresentarão
outros núcleos e atividades
representativas
da história da USP
MIGUEL BOYAYAN
FABRÍCIO MARQUES
No prédio da FMUSP,
hoje tombado pelo
Patrimônio Histórico,
emergiram gerações dos
melhores médicos brasileiros
USP70

to da medicina expandiu-se e já não cabe naquelas antigas
cadeiras dos catedráticos. Os médicos se especializam cada
vez mais cedo”, diz Ricardo Brentani, presidente da Comissão
de Pesquisa da faculdade. Outra mudança, essa mais
recente, é a dedicação cada vez maior à pesquisa científica.
Nos últimos dez anos, cresceu progressivamente a produtividade
dos 62 Laboratórios de Investigação Médica
(LIM), os braços de pesquisa da FMUSP. Tome-se como
referência os trabalhos originais publicados em revistas
indexadas na base do Institute for Scientific Information
(ISI). Em 1993, constam 72 trabalhos dos LIM na base
ISI. Em 2002, esse número saltou para 338. Em termos
relativos, o avanço também é significativo. Os LIM eram
responsáveis por 1,6% de todas as publicações brasileiras
na base ISI em 1993. Em 2002, essa fatia alcançou 3%.
ssa mudança foi provocada por um conjunto
de medidas que estimularam a
atividade de pesquisa. Uma fração de
2% do dinheiro que o HC recebe do Sistema
Único de Saúde (SUS), o equivalente
a R$ 2,6 milhões em 2002, passou
a ser destinada aos LIM – e distribuída
segundo critérios de produtividade, como a publicação
de trabalhos em revistas científicas de impacto e a capacidade
de atrair recursos externos para pesquisa. Os laboratórios
são avaliados anualmente. Conforme a nota
dada, cada LIM recebe um quinhão maior ou menor.
Esse dinheiro é gasto com autonomia, na compra, por
exemplo, de material ou de passagens aéreas para pesquisadores
participarem de congressos. Os 126 docentes
com dedicação exclusiva à faculdade também conquistaram
o direito a uma suplementação salarial variável. São
avaliados com notas de A a D. Os de nota A chegam a receber
R$ 3 mil extras no contracheque. Os de nota D não
ganham nada. “A avaliação leva em conta várias atividades
do professor, mas, sobretudo, a dedicação à pesquisa”,
diz José Eluf Neto, diretor-executivo dos LIM.
As agências de fomento também tiveram um papel
importante nesse novo perfil.“O raciocínio é simples”, diz
Maria Mitzi Brentani, professora associada da disciplina
de Oncologia. “Com as verbas de agências, os laboratórios
equiparam-se para fazer pesquisa, desonerando o orçamento
da faculdade e do HC, que pode ser gasto com salários
e atendimento ao público”, diz. Em 2002, essas verbas
alcançaram R$ 15,6 milhões.As principais fontes foram
a FAPESP, com R$ 8,6 milhões, e o Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), com
R$ 1,8 milhão. “No contexto da pesquisa biomédica, a
FMUSP toma parte de todos os grandes programas da
FAPESP. Participou de todos os genomas. E muitos dos
professores têm programas temáticos com a instituição”,
diz Eduardo Massad, professor de Informática Médica.
Massad coordena um LIM que se notabilizou pela elaboração
de modelos matemáticos capazes de avaliar a disseminação
de doenças e pela criação de estratégias para com-
52  MARÇO DE 2004  PESQUISA FAPESP 97
batê-las. Recentemente, uma pesquisa anteviu a eclosão
de febre amarela numa região do interior paulista fustigada
pela dengue e povoada pelo mosquito que espalha
as duas doenças – o que aconteceu em seguida.
Células-tronco - Um exemplo da expansão da atividade
de pesquisa é o Laboratório de Genética e Cardiologia
Molecular, que ocupa o 10º andar do novo edifício do
Instituto do Coração, o Incor. Com um projeto arquitetônico
inspirado em laboratórios da Universidade Harvard,
a instituição lidera, desde a primeira metade dos
anos 1990, uma pesquisa de mapeamento de regiões cromossômicas
ligadas à hipertensão. Outra linha de pesquisa
busca entender como fatores genéticos e ambientais
interagem para o aumento do risco cardiovascular –
e demonstrou que a hipertrofia no coração de camudongos
é tão mais grave quanto maior for o número de
cópias do gene responsável pela produção da enzima
conversora de angiotensina I (ECA). A alteração genética,
é certo, não é causa direta do problema, mas desponta
quando um outro gatilho sobrecarrega o coração. O Laboratório,
que se integrou ao esforço para mapear a bactéria
Xylella fastidiosa, hoje abriga uma vasta coleção de
pesquisas, que vão desde a genética envolvida na resistência
das veias safena usadas como pontes no coração
até a aplicação de células-tronco para reconstituir regiões
do músculo cardíaco afetadas por enfartes. Especula-se
que a pesquisa de células-tronco possa ter um efeito mobilizador
da opinião pública semelhante ao advento dos
transplantes cardíacos no final dos anos 1960. Dez pacientes
enfartados já receberam injeções dessas células,
capazes de se transformar em qualquer tecido. Reagiram
bem. A pesquisa agora vai seguir com mais 60 pacientes
para avaliar a eficácia desse procedimento na capacidade
de reconstituir vasos e tecidos. “São imensas as oportunidades
de novos tratamentos relacionados à terapia celular
e à terapia gênica”, diz o professor José Eduardo
Krieger, responsável pelo laboratório.
O laboratório do Incor nem de longe é exemplo isolado.
Recentemente, a pesquisadora Ana Claudia Latronico,
da Unidade de Endocrinologia do Desenvolvimento
do Hospital das Clínicas, ganhou o Prêmio Richard E.
Weitzman, concedido em junho pela Sociedade Americana
de Endocrinologia, pela participação em estudos
pioneiros que descrevem novas mutações genéticas causadoras
de doenças hormonais. A equipe chefiada pela
professora de oncologia Maria Mitzi Brentani, no Instituto
de Radiologia, participa de pesquisas como a procura
de marcadores moleculares relacionados à resposta
à quimioterapia dos pacientes de câncer de mama. A
equipe apresentou recentemente num congresso as características
genéticas que, supostamente, fazem pacientes
até com tumores avançados reagirem bem à doxorrubicina,
droga quimioterápica. A descoberta, agora
submetida a estudos mais amplos, pode ter um papel
importante na escolha do tratamento para cada pacien-
E
USP70
PESQUISA FAPESP 97  MARÇO DE 2004  53
nos irreversíveis nos pulmões”, diz Marcelo Amato. O
equipamento consiste numa cinta atada ao tórax, repleta
de eletrodos, que emitem pulsos na direcão do pulmão
em freqüências imperceptíveis ao corpo humano. Em um
monitor, os pulsos se transformam em imagens que revelam
os movimentos do pulmão – o ar que entra e sai é
um isolante elétrico. O aparelho será avaliado na UTI do
Hospital das Clínicas.
Ensino e pesquisa são indissociáveis na trajetória da
FMUSP, mas a balança historicamente pendeu para a
formação profissionalizante. A faculdade começou a funcionar
em 1913 e ganhou sua sede atual, um conjunto arquitetônico
em frente ao Cemitério do Araçá, dezoito
anos mais tarde. O prédio foi tombado pelo Patrimônio
Histórico em 1981, por encarnar um conceito de escola
médica modelar para a época – dois grandes departamentos
(o laboratório e o clínico) instalados num
bloco só, num “hospital de ensino”. Como os professores
deveriam dedicar todo seu tempo à faculdade, a contrapartida
arquitetônica foi a criação de gabinetes para os
docentes e seus assistentes. O conjunto foi construído
com dinheiro da Fundação Rockefeller e reproduzia o
ensino médico praticado nos Estados Unidos, fortemente
vinculado à pesquisa.Mas a medicina que se praticava
no Brasil, naquela época, tinha sotaque francês –
um modelo mais empírico e menos investigativo. Até
a Segunda Guerra, quando os professores da FMUSP
te, de acordo com as peculiaridades de seu DNA. “Nosso
objetivo de longo prazo é encontrar um largo espectro
de marcadores de tumores”, diz a professora Maria
Mitzi Brentani. Outra linha de pesquisa investiga a relação
entre os baixos níveis de vitamina D no sangue e a
eclosão do câncer de mama em mulheres com mais de
65 anos.Uma hipótese é que a baixa exposição ao sol e a
alimentação pobre tenham um papel na deficiência da
vitamina D e no conseqüente surgimento da doença.
o Laboratório de Pneumologia, o
professor-assistente Marcelo Amato
desenvolveu um equipamento
capaz de produzir imagens, através
da emissão de pulsos elétricos, das
condições pulmonares de pacientes
de UTIs submetidos a respiração
artificial. É comum que a ventilação forçada cause danos
ao pulmão e os médicos têm ferramentas pouco acuradas
para detectar esses problemas. Certas manobras,
como a fisioterapia e a calibragem dos equipamentos,
podem ajudar a prevenir o efeito colateral. Em 1998, o
grupo da Pneumologia publicou na revista científica The
New England Journal of Medicine um estudo mostrando
os danos da ventilação mecânica. “Um caso famoso é o
do presidente Tancredo Neves, que, depois de várias semanas
internado e respirando artificialmente, sofreu da-
Ensino e pesquisa são indissociáveis na FMUSP,
mas o gigante HC reforçou o caráter assistencial
N
MIGUEL BOYAYAN
queriam se reciclar, costumavam
ir a Paris.
Segunda mão - Em 1934,
com a fundação da USP,
a Faculdade de Medicina
integrou-se, oficialmente,
ao corpo da Universidade.
A criação do
Hospital das Clínicas, em
1944, e o gigantismo que
logo adquiriu moldaram
o caráter assistencial e
formador de bons médicos
da faculdade. A pesquisa
acabou ficando em
segundo plano. “Se você
analisar a biografia dos
grandes professores da
faculdade naquela época,
verá que eram grandes
clínicos ou cirurgiões,
grandes professores, mas
hoje seriam vistos como pesquisadores pouco produtivos”,
diz o professor Eduardo Massad. A pesquisa que
por muito tempo se fez na FMUSP, e ainda ocupa espaço
lá dentro, foi a que aproveita a diversidade de pacientes
e seus diagnósticos para testar remédios. “Mas é um
tipo de pesquisa de segunda mão. As drogas não são desenvolvidas
aqui dentro”, completa Massad. A reforma
universitária de 1969 representou um golpe nas atividades
da pesquisa. Com a transferência das cadeiras básicas
da FMUSP para a Cidade Universitária, a faculdade
ressentiu-se com a perda de pesquisadores e laboratórios.
A reação veio em 1975, com a criação dos Laboratórios de
Investigação Médica, os LIM, protagonistas da atual escalada
de pesquisas.
Também remonta aos anos 1970 uma experiência de
gestão que teria impacto na instituição. Lastreado pelo
prestígio popular que conquistou ao realizar o primeiro
transplante cardíaco do Brasil, o cirurgião Euryclides Zerbini
(1912-1993) conseguiu apoio e dinheiro para criar
um apêndice do Hospital das Clínicas ligado à sua especialidade,
o Instituto do Coração (Incor). Do governo
estadual, conseguiu a cessão de um terreno na avenida
dr. Enéas, à época um barranco nos fundos do Instituto
Emílio Ribas. Além da competência de seus clínicos e cirurgiões,
o Incor foi inovador no modelo de gestão. O
instituto é gerenciado pela Fundação Zerbini, uma entidade
de direito privado, que instituiu um modelo para
captar recursos privados, reservando 20% dos leitos do
Incor para convênios médicos e pacientes particulares.
Os 80% demais são vagas do SUS. O modelo gerou um
equilíbrio financeiro que garantiu a continuidade de
projetos de pesquisa nos anos 1980, quando a economia
do país estagnou. A fundação promove a contratação de
funcionários e a complementação salarial de empregados
do HC. Exige-se que os médicos trabalhem em tempo
integral – podendo até mesmo atender pacientes particulares
em consultórios na instituição. O exemplo do Incor
inspirou a criação, nos anos 1980, da Fundação Faculdade
de Medicina da USP, que também busca levantar recursos
privados para a instituição, mas não tem tanta flexibilidade
quanto a Fundação Zerbini.
riamos um ambiente em que médicos
e funcionários trabalham motivados e
a rotatividade é muito baixa, de 3%
dos funcionários ao ano”, diz o professor
Sérgio Almeida de Oliveira, diretor
da Divisão de Cirurgia Torácica e
Cardiovascular. A Fundação Zerbini
reserva verbas para que os médicos do hospital submetam
suas pesquisas a revistas internacionais e participem de
congressos. Em 2002 havia 463 projetos de pesquisa em
andamento.O fôlego financeiro da instituição, contudo,
vem do atendimento aos pacientes. O segundo prédio
do Incor, recém-inaugurado, foi idealizado para abrigar
apenas atividades de pesquisa.Mas, quando a Fundação
Zerbini colocou o projeto na ponta do lápis, viu-se que
era necessário ampliar o atendimento para arrecadar
mais dinheiro do SUS e de convênios. Decidiu-se, então,
reservar o 6º, 7º e 8º andares para internações. Hoje, o
hospital tem 510 leitos.
Um paradoxo permeia a história da FMUSP. Não há
professor, aluno ou funcionário que não reclame da superlotação
do HC e de seu impacto perturbador no
ambiente de ensino e na pesquisa. Mas é a demanda da
população que abastece o complexo com uma diversida-
54  MARÇO DE 2004  PESQUISA FAPESP 97
A construção do prédio, no final dos anos 20,
foi financiada pela Fundação Rockefeller
C‘‘
FOTOS MIGUEL BOYAYAN / ACERVO MUSEU HISTÓRICO PROF. CARLOS DA SILVA LACAZ
USP70
de de diagnósticos e tratamentos que são uma matériaprima
fundamental para o ensino e a pesquisa. O prestígio
da instituição vem de sua capacidade de fazer
medicina de ponta, que é indissociável da pesquisa. Recentemente,
a direção do hospital anunciou a decisão de
rejeitar o atendimento de casos simples para investir na
vocação original da instituição, que são os casos complexos.
A medida, a rigor, já era realidade.O HC tem um telefone
para marcar consultas, criado para evitar as filas.
Na prática, funciona como uma peneira. Recebe 20 mil
ligações por dia e agenda 200 consultas. “Sem dispersar
esforços com casos sem gravidade, seremos capazes de
fazer pesquisas de mais qualidade e melhorar o ensino”,
afirma Giovanni Cerri, atual diretor da FMUSP.“A faculdade
está muito bem quando é comparada a escolas do
Brasil, mas, diante do desempenho de escolas de outros
países, vemos que é possível
melhorar”, diz.
É difícil mensurar o
impacto que o movimento
exagerado do HC tem
na formação dos estudantes.
“Nossos alunos
são tão bons que superam
quaisquer deficiências
da instituição”, diz
o professor Paulo Saldiva,
coordenador do Laboratório
de Poluição
Atmosférica da FMUSP,
um dos mais produtivos
da instituição, com mais
de 20 pesquisas publicadas
por ano em revistas
internacionais. O vestibular
da FMUSP é concorridíssimo
e seleciona
a elite dos candidatos – a
nota de corte do curso de
medicina é a mais alta entre
todas as carreiras. Depois
vem a disputa pelas
vagas na residência médica,
que atrai os melhores
alunos do país. Igualmente,
é concorrido o ingresso
nos programas de pósgraduação.“
Podemos nos
dar ao luxo de não absorver
os pesquisadores que
formamos, porque no
ano que vem virá uma
turma tão boa quanto a
atual”, diz Saldiva.
Os pesquisadores da
FMUSP gostariam que a
instituição investisse mais
nos laboratórios de investigação
médica. Lembram
que o SUS remunera o Hospital das Clínicas segundo
uma tabela especial, pagando até 46% a mais a
cada procedimento porque se trata de um instituição
dedicada à pesquisa. “O hospital recebe do SUS 46% a
mais por fazer pesquisa, mas reverte à pesquisa apenas
2%. Pode-se dizer que é pouco”, diz o professor Eduardo
Massad.Mas mesmo a concessão dos atuais incentivos à
pesquisa teve alguma oposição dos docentes que cultuam
a tradição profissionalizante da instituição. Essa
tensão é saudável. Ninguém duvida de que a grande vocação
da FMUSP continuará sendo a de grande escola
médica e a do HC, de importante pólo de assistência à
população. Mas o prestígio do quadrilátero das avenidas
dr. Arnaldo e dr. Enéas tem a muito a ver com a pesquisa
produzida ali, com a capacidade que a instituição mantém
de empurrar as fronteiras da medicina. •
PESQUISA FAPESP 97  MARÇO DE 2004  55
Dr. Arnaldo, cirurgião
pioneiro (acima e à
dir.), fundou a FMUSP
em 1913, mas não viveu
para ver a inauguração
da sede, em 1931 (alto)
62  ABRIL DE 2004  PESQUISA FAPESP 98
Terra produtiva
ão européias as raízes da centenária Escola
Superior de Agricultura Luiz de Queiroz
(Esalq), unidade da Universidade de São
Paulo (USP) que se tornou a principal referência
em ensino de Ciências Agrárias no
país. O conceito acadêmico, com prédios de
arquitetura refinada entremeados por campos
experimentais, foi inspirado nas escolas
agrícolas de Grignon, na França, e de Zurique,
na Suíça, freqüentadas na segunda
metade do século 19 por Luiz de Queiroz (1849-1898), riquíssimo
herdeiro paulista. De volta ao Brasil formado em Agronomia,
ele decidiu fundar uma escola seguindo os moldes europeus.
Comprou uma fazenda para erguê-la, nos arredores do
município de Constituição, hoje Piracicaba, e pediu ajuda ao
governo republicano para construir os prédios. A subvenção,
porém, foi negada. Para não deixar a idéia morrer, Luiz de Queiroz
decidiu doar a fazenda ao governo com a condição de que a
escola, pública, surgisse ali. Ela seria fundada como escola prática
de nível médio, em 1901, já depois da morte do idealizador,
mas respeitou o sonho europeu. Em 1907, a fazenda transformou-
se em parque, raro exemplo do estilo inglês de paisagismo
no Brasil. Os grandes gramados, alamedas de linhas curvas e
maciços de árvores em pontos estratégicos são hoje uma jóia
do ambiente urbano de Piracicaba. É assinado pelo belga Arsênio
Puttemans, também criador dos jardins do Museu do
Ipiranga, em São Paulo.
Transformada em escola superior e integrada à estrutura da
USP quando a instituição foi fundada há 70 anos, a Esalq seguiu
bebendo da fonte européia. Seu patriarca acadêmico é o geneticista
Friedrich Gustav Brieger, judeu alemão que migrou para o
Brasil na leva de pesquisadores estrangeiros que fundaram a
USP. Pois foi nesse cenário de país temperado que se consolidou
um panteão científico da agricultura tropical. Sobretudo nos
primeiros 60 anos de atividade, a Esalq liderou pesquisas que
mudaram os hábitos alimentares dos brasileiros.Muitas hortaliças,
por serem de variedades européias, produziam bem no inverno,
mas eram escassas e caras no verão. O brasileiro passou
a comer salada o ano inteiro graças a pesquisas de melhoramento
genético de alface, repolho, brócolis, couve-flor, cebola e
berinjela feitas na Esalq. A instituição teve papel-chave no desenvolvimento
de variedades de milho mais nutritivas e ricas
em aminoácidos. E também na pesquisa de propriedades do
solo e nutrição de plantas que transformou o cerrado brasileiro,
antes imprestável para o plantio, em celeiro de 30% da pro-
Na série de reportagens
sobre os 70 anos
da Universidade de
São Paulo,
Pesquisa FAPESP
mostra a trajetória
da centenária Escola
Superior de Agricultura
Luiz de Queiroz, a Esalq,
que mudou hábitos
alimentares dos brasileiros
e hoje lidera pesquisas
em biotecnologia
FABRÍCIO MARQUES
USP70
S
PESQUISA FAPESP 98  ABRIL DE 2004  63
FOTOS EDUARDO CESAR
dução de grãos. Não dá para escapar do clichê: a Esalq muitas
vezes foi a salvação da lavoura para os agricultores. Certa vez,
no final dos anos 1950, um grupo de produtores do cinturão
verde de Mogi das Cruzes, de origem nipônica, levou ao então
governador Jânio Quadros um pedido inusitado. Queriam que
o governo concedesse o regime de tempo integral – e o respectivo
salário maior – ao professor Marcílio de Souza Dias, artífice
de pesquisas de melhoramento genético. Figura lendária,
Marcílio foi escolhido o Pesquisador do Centenário da Esalq,em
2001. Avesso aos trâmites normais da carreira acadêmica, vivia
nos campos, fazendo cruzamentos de plantas e avaliando os resultados.
Com produção científica escassa, nem sequer tinha
doutoramento. Jânio promoveu o professor.
O perfil da escola mudou nas últimas décadas. O ensino, é
certo, continua de boa qualidade. Os seis cursos de graduação
oferecidos (Agronomia, Engenharia Florestal, Ciências Econômicas,
Ciências Biológicas, Ciências dos Alimentos e Gestão
Ambiental) são freqüentados por 1.830 alunos. No último Provão,
Éverton Yoshiaki Hiraoka, da Esalq, recebeu a nota mais
alta entre todos estudantes de Engenharia Agronômica do país.
Mas a escola já não é um celeiro isolado de bons profissionais,
como chegou a acontecer no passado. Divide o topo da graduação
com instituições como a Universidade Federal de Viçosa
(UFV) ou as unidades da Universidade Estadual Paulista
(Unesp) em Botucatu e Jaboticabal. Aquele tipo de trabalho de
campo em que se destacava o professor Marcílio de Souza Dias
passou a ser liderado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária,
a Embrapa (onde, aliás, centenas de ex-alunos da
Esalq atuam como pesquisadores). A pesquisa aplicada da Esalq
Ceres, deusa
da agricultura,
orna a sala
da diretoria
da Esalq, em
pintura de 1916
64  ABRIL DE 2004  PESQUISA FAPESP 98
tem espaço agora em áreas emergentes como controle
biológico de pragas. A escola desenvolveu uma armadilha
natural para capturar mariposas conhecidas como
bicho-furão, que na fase de lagarta ataca frutas cítricas.
A armadilha revela o grau de infestação dos cítricos
e aponta a hora adequada de aplicar inseticidas. Esta
pesquisa foi desenvolvida por José Roberto Postali Parra,
atual diretor da escola, e José Maurício Simões Bento,
em colaboração com a UFV e a Universidade da Califórnia,
Davis.
escola passou a investir fortemente em
outra vocação: a pós-graduação, que já
conferiu 5.300 títulos de mestrado e
doutorado desde 1964, quando foi criada.
Seus 16 programas, atualmente freqüentados
por 1.117 alunos, foram
responsáveis pela formação de 70%
dos doutores brasileiros em Ciências Agrárias. No campus
de Piracicaba, surgiria nos anos 1960 outra instituição
de pesquisa e pós-graduação, o Centro de Energia
Nuclear na Agricultura (Cena), também vinculado à
USP, mas com administração própria. O resultado dessa
nova estratégia na Esalq foi a expansão de laboratórios e
o investimento em fronteiras do conhecimento que nem
sempre geram aplicações imediatas. O exemplo mais eloqüente
é o da área de biotecnologia. “No início dos anos
1990, tivemos a sensibilidade de atrair um grupo de
jovens doutores que voltavam do exterior e, com eles,
avançamos em biotecnologia”, diz Raul Machado Neto,
vice-diretor da Esalq e presidente da Comissão de Pesquisa.
Apoiados no Núcleo de Apoio à Pesquisa em Biologia
Celular e Molecular na Agropecuária, os pesquisadores
participaram dos projetos Genoma da Xylella, da
cana-de-açúcar, da Xanthomonas, do câncer, do café e do
eucalipto, entre outros.
Há dez anos, a Esalq foi pioneira na pesquisa de biotecnologia
aplicada a animais.Hoje, o Departamento de
Zootecnia está integrado a dois grandes projetos de seqüenciamento
genético. Um deles é o Genoma Frango,
em parceria com a Embrapa Suínos e Aves. O projeto
começou há três anos e já identificou diversos genes relacionados
ao desenvolvimento muscular do frango. O
objetivo é encontrar a raiz genética que leva frangos a
acumular mais proteína do que gordura, a fim de melhorar
a qualidade da carne. O outro projeto é o Genoma
Funcional do Boi, realizado em colaboração com a
Unesp de Botucatu, financiado pela FAPESP e a Central
Bela Vista Genética Bovina, empresa que comercializa
sêmen e embriões bovinos. O projeto está concluindo
a fase de seqüenciamento e sairá em busca da identificação
de genes relacionados à resistência a parasitas, à eficiência
reprodutiva e à qualidade do couro.
O único laboratório de biotecnologia animal a participar
da rede que seqüenciou o genoma da Xylella
fastidiosa, a praga do amarelinho nos laranjais, foi a Zootecnia
da Esalq. “A oportunidade de participar do
projeto em parceria com outras instituições nos ajudou
a criar competência na área genômica, que agora compartilhamos
com outras instituições”, diz Luiz Leh-
USP70
O Departamento de Genética conseguiu
desenvolver eucaliptos transgênicos, que
prometem mais celulose por árvore
FOTOS EDUARDO CESAR
A
PESQUISA FAPESP 98  ABRIL DE 2004  65
mann Coutinho, professor-associado da
Esalq e responsável pelo laboratório, referindo-
se a professores, pesquisadores e estudantes
de pós-graduação de várias instituições
que passam pela Esalq. Lehmann é
um dos pesquisadores que chegaram à
escola no início dos anos 1990, depois de
fazer mestrado e doutorado em Zootecnia
na Universidade de Michigan e pós-doutoramento
em genética molecular.Nem só
de pesquisa básica vive o laboratório. São
oferecidos a produtores diversos testes genéticos
antes disponíveis apenas no exterior.
Suinocultores enviam à Esalq amostras
de pêlo ou sangue de seus animais, para
pesquisar a incidência de um gene relacionado
à má qualidade da carne e outro
ligado à capacidade de gerar mais filhotes
em cada gestação. O resultado dos testes
determina a escolha dos porcos para
reprodução. O laboratório também faz
exames de DNA em bois. Para quê? Para
garantir que um boi é mesmo o filho de
animais reconhecidamente superiores, pois
isso tem alto valor comercial. O erro no
diagnóstico de paternidade chega a 30%
nas fazendas de corte.
utro projeto de destaque
é o desenvolvimento
de eucaliptos
modificados geneticamente.
Uma equipe
do Departamento
de Genética da Esalq
conseguiu introduzir no eucalipto, matéria-
prima da celulose, um gene de ervilha
ligado à fotossíntese. O objetivo é melhorar
a captação de luz solar, aumentar a biomassa
da árvore e produzir mais celulose.
A Companhia Suzano de Papel e Celulose,
que tem interesse nessa investigação, doou
R$ 585 mil para reforma e compra de equipamentos
do Laboratório de Genética de
Plantas (rebatizado como Max Feffer, pioneiro
no uso do eucalipto para produção
de celulose e filho do fundador da Suzano,
Leon Feffer). “A produtividade do eucalipto
pode aumentar em 2% a 3 % e será
possível obter mais celulose com menos
processos químicos e custo reduzido”, diz
Carlos Alberto Labate, professor do Departamento
de Genética e coordenador do laboratório.
As primeiras avaliações sobre a
eficiência do processo devem despontar
O vitral no prédio principal virou
logomarca da Esalq e pôsteres
com a imagem espalham-se pela instituição
O
66  ABRIL DE 2004  PESQUISA FAPESP 98
em 2005. A Esalq aguarda autorização
da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança
(CTNBio) para levar as mudas
transgênicas a campos experimentais. O
laboratório tem objetivos de longo prazo:
buscar genes envolvidos na formação
e na qualidade da madeira. Não é novidade
o interesse da iniciativa privada na
massa crítica gerada pela Esalq. Mas as
parcerias, que se concentravam na área
de assistência técnica, andam cada vez
mais sofisticadas. Na pesquisa do eucalipto,
busca-se um produto – a madeira
com mais celulose. E, para chegar a ele,
desenvolve-se pesquisa básica e aplicada.
“As coisas andam juntas”, diz Labate.
“Para alcançar a aplicação é preciso fazer
pesquisa básica e a empresa que nos patrocina
sabe disso. Nossos alunos de iniciação
científica e de doutorado enriquecem
sua formação nesse ambiente.”
escola tem outras parcerias
célebres. A Bolsa de Mercadorias
& Futuros financiou
a construção
do prédio do Centro
de Estudos Avançados
em Economia Aplicada (Cepea),
da Esalq, com a qual mantém um acordo para produção
de indicadores agrícolas. Outro trabalho importante é o
monitoramento de microbacias hidrográficas, coordenado
pelo professor Walter de Paula Lima, do Departamento
de Ciências Florestais, em convênio com
o Instituto de Pesquisas e Estudos Florestais (Ipef). Esse
programa teve início em 1987 e já estabeleceu estações
em vários estados, a pedido de empresas florestais, como
a Votorantim Celulose e Papel, Aracruz, Eucatex e Copebrás.
O objetivo é acompanhar o impacto da exploração
nas bacias atingidas e obter indicadores para subsidiar o
manejo sustentável das florestas. Esse trabalho, que permite
às empresas corrigir agressões ao ambiente, também
produz conhecimento científico. Com informações
colhidas numa área explorada pela Votorantim Celulose
e Papel, os pesquisadores da Esalq e do Ipef concluíram
que a falta de cálcio numa área de reflorestamento de
eucaliptos podia ser resolvida com uma medida simples:
deixando-se a casca das árvores, que é rica em cálcio, no
solo, em vez de levar embora as árvores com casca.“Nosso
trabalho permite às empresas calibrar seus indicadores
ambientais”, diz o professor Walter de Paula Lima.
A mudança no perfil da Escola Luiz de Queiroz reflete,
de certo modo, a transformação do mercado de trabalho
das Ciências Agrárias.Até 20 anos atrás, os agrônomos
formados pela escola tinham o clássico perfil do
extensionista, aquele que visita propriedades e dá assistência
individualizada. Essa formação generalista, hoje,
está longe de ser suficiente. De um lado, a proliferação
de escolas de agronomia tornou a competição entre os
profissionais mais acirrada. De outro, a agricultura mudou
numa velocidade enorme, ganhou produtividade e
escala econômica, e se tornou mais dependente de tecnologia.
Isso exige do profissional uma especialização
muito maior. A Esalq começa a apostar, por exemplo, na
agricultura de precisão, conceito que balança alicerces
da pesquisa agronômica. A agricultura de precisão pontifica
que cada região de uma área de plantio carece de
quantidades peculiares de adubos e corretivos. Essa
idéia, que já existe há muito tempo, tomou forma na Europa,
em especial na Dinamarca, devido a uma limitação
legal da aplicação de fertilizantes. Avaliam-se essas necessidades
medindo a produtividade de cada pedaço do
terreno. Depois, aplica-se mais adubo nas partes que
renderam mais (pois elas tiraram mais nutrientes do
solo). Colheitadeiras ligadas a um sistema de geoprocessamento
por satélite, o GPS, marcam os locais em que a
produção é maior e registram esse desempenho num
mapa, que servirá de guia para a aplicação do adubo.
A agricultura de precisão já produziu economia de até
30% em insumos e vem ganhando espaço nos Estados
Unidos e na Europa.Mas desafia, de certo modo, toda a
pesquisa agronômica, pois ela tira conclusões partindo
do pressuposto de que um terreno contínuo tem necessidades
uniformes de nutrientes.
A Esalq participa do Genoma Funcional do Boi
e sairá à procura de genes envolvidos na
qualidade do couro e na resistência a parasitas
USP70
A
eram acompanhados
por meio de tabelas de
sindicatos patronais e
de caminhoneiros. Os
valores tornaram-se a
principal referência em
modelos matemáticos
para racionalizar roteiros
de cargas agrícolas.
O levantamento é publicado
gratuitamente
num pequeno jornal e
disponibilizado no site
do Esalq-Log, no endereço
eletrônico http://
log.esalq.usp.br. O grupo
trabalha em outras
frentes. Um caso exemplar
foi o modelo criado
para uma empresa
produtora de lírios em
Holambra, interior paulista.
A logística do negócio
envolvia a melhor
hora de importar os
bulbos da Holanda e
cultivá-los em estufa em
quantidade maior para
a demanda atípica das
datas comemorativas.
O modelo matemático,
com 120 mil variáveis e
400 mil restrições, gerou um mapa diário com ordens de
importação e de produção que levou a um aumento
de faturamento de 26% na empresa, sem novos investimentos.
“Nosso desafio é mostrar aos profissionais
de Ciências Agrárias que eles podem gerar ganhos até
com modelos matemáticos muito simples”, afirma Caixeta
Filho.
Aposentado há 20 anos, o professor de Genética Ernesto
Paterniani, hoje ouvidor do campus Luiz de Queroz,
que congrega a Esalq e o Cena, lembra com certa
nostalgia dos tempos em que pesquisa se fazia nos campos
experimentais, não nos laboratórios ou na frente de
computadores. “Corríamos um risco maior”, brinca ele.
“Quando apresentávamos uma novidade a ser aplicada
a um legume ou hortaliça, ela era testada imediatamente
por milhares de agricultores e, se estivéssemos errados,
as reclamações vinham de todo lado.” Paterniani
teme que o futuro da pesquisa agrícola brasileira esteja
ameaçado, devido à limitação de recursos da Embrapa e
à escalada de restrições legais aos produtos biotecnológicos.
Acha que a Esalq deveria calibrar melhor seus esforços
de pesquisa para impedir que isso aconteça. “Se a
pesquisa no Brasil parasse hoje, isso só seria sentido em
alguns anos, quando viesse uma praga nova ou a produtividade
de outros países aumentasse”, afirma ele. Caso o
cenário se confirme, os agricultores sabem onde procurar
ajuda, como os hortelões japoneses que foram bater
à porta do governador Jânio Quadros. •
PESQUISA FAPESP 98  ABRIL DE 2004  67
osé Paulo Molin, professor do Departamento
de Engenharia Rural, lidera a pesquisa em
agricultura de precisão na Esalq, que, com a
ajuda de outros departamentos e instituições,
busca desenvolver uma tecnologia mais barata
e adaptada à realidade nacional. Uma das alternativas
é delimitar pedaços do terreno e
avaliar a quantidade de nutrientes em cada
um deles, sem a necessidade do GPS. Com base nas informações,
criam-se mapas para lançar adubo. “A agricultura
de precisão teve altos e baixos nos Estados Unidos,
devido ao excesso de promessas. Não é uma panacéia,
mas não se pode fechar os olhos para ela”, diz Molin, que
participa da organização do 1º Congresso Brasileiro de
Agricultura de Precisão, programado para maio.
O interesse pela Matemática e Estatística, inaugurado
na Esalq pelo geneticista Friedrich Gustav Brieger
nos anos 1930 e difundida por Francisco Pimentel Gomes,
hoje produz ferramentas na área de Logística. Professores
e alunos do Grupo de Pesquisa e Extensão em
Logística Agroindustrial (Esalq-Log) dedicam-se a criar
sistemas de informação e modelos matemáticos que auxiliem
na gestão dos agronegócios. Liderado por José Vicente
Caixeta Filho, a equipe desenvolveu, em meados
dos anos 1990, o pioneiro Sistema de Informações sobre
Fretes (Sifreca), disponibilizando os preços de fretes de
50 produtos agrícolas praticados em mais de 5 mil rotas.
Até o advento do Sifreca, os preços de frete no Brasil
No Genoma Frango, busca-se a
raiz genética que produz carne
mais proteica e menos gordurosa
AGÊNCIA NATIVA DO MEIO RURAL
EDUARDO CESAR
J
108  JUNHO DE 2004  PESQUISA FAPESP 100
Usina de engenhos
s 111 anos de história da
Escola Politécnica da Universidade
de São Paulo
(Poli-USP) resumem a
trajetória de um país que
soube se modernizar a
passos velozes. São Paulo
ganhou ares cosmopolitas
graças, em boa medida,
à contribuição de pioneiros
como o engenheiro Antonio Francisco de Paula
Souza (1843-1917) ou o construtor de edifícios e palacetes
Francisco de Paula Ramos de Azevedo (1851-
1928), ambos fundadores da Escola Politécnica de São
Paulo, em 1893. No final dos anos 1920, quando governar
virou sinônimo de construir estradas, a instituição
forneceu quadros para riscar um primeiro rascunho
da malha rodoviária que, décadas mais tarde,
substituiria de vez as ferrovias. Engenheiros politécnicos
aventuraram-se até a produzir blindados e grana-
Na série de
reportagens sobre
os 70 anos da
Universidade de São
Paulo,Pesquisa
FAPESP mostra as
soluções tecnológicas
criadas pela Escola
Politécnica da USP,
celeiro de
profissionais que
ajudaram a
modernizar o país
FABRÍCIO MARQUES
USP70
O das quando São Paulo insurgiu-se contra Getúlio Vargas
em 1932. A Escola, que se incorporou à Universidade
de São Paulo em 1934, logo ganharia fama de
celeiro de homens públicos – um punhado de governadores
paulistas passaram por ela.
Entre as décadas de 1950 e 1970, aquela fase em
que a economia brasileira cresceu a taxas de tigre
asiático e carecia de soluções tecnológicas para lastrear
o desenvolvimento, o engenheiro politécnico
viveu talvez a sua fase de ouro. “A gente ia de ônibus
para a faculdade carregando aquela enorme régua T
e chamava atenção. Muito futuro engenheiro arrumou
namorada assim”, lembra o professor Moacyr
Martucci Júnior, presidente da Comissão de Pesquisa
da Poli-USP. O advento da informática provocou
um terremoto na engenharia, que explodiu em novas
especialidades. Da engenharia elétrica, brotou a
engenharia de computação. Das engenharias elétrica
e mecânica surgiu a mecatrônica. Os computadores
levaram a régua T a uma merecida aposentaPESQUISA
FAPESP 100  JUNHO DE 2004  109
FOTOS EDUARDO CESAR
doria e estabeleceram novas bases para o ensino e a
pesquisa da instituição, onde trabalham hoje 495 docentes
e estudam 4,3 mil alunos de graduação e 4 mil
de pós-graduação.
A Poli-USP metamorfoseou-se para manter seu papel
modernizador e continuou criando engenhos capazes de
melhorar o bem-estar da sociedade. É possível citar contribuições
marcantes de pesquisadores e profissionais
formados da instituição em inúmeras áreas. Nos anos
1960, o planejamento na área de transportes no país,
que transformou a engenharia de tráfego em ciência e
foi aplicado na construção das linhas de metrô, também
despontou graças ao trabalho de professores da Poli,
como Íon de Freitas e Antonio Galvão Novaes. Entre
1990 e 1994, a Escola Politécnica da USP foi dirigida
pelo professor Francisco Romeu Landi, diretor-presidente
do Conselho Técnico-Administrativo da FAPESP,
que morreu em abril aos 71 anos.
Se o Brasil hoje dispõe de uma indústria de microeletrônica
e expertise na área de telecomunicações, deve
isso à capacidade da Escola Politécnica em fazer pesquisa
e formar mão-de-obra nessas áreas nos últimos 30
anos. A Escola reivindica a criação do primeiro computador
brasileiro. Batizado de “Patinho Feio”, foi obra de
pesquisadores da área de engenharia elétrica, em 1972.
Passados 30 anos, essa semente produziu uma árvore de
frutos carregados. Embora o Brasil, como vários outros
países, não tenha conseguido desenvolver uma indústria
de computadores competitiva como planejado inicialmente,
os pesquisadores da área de informática da Poli-
A Caverna Digital
simula ambientes
interativos para
pesquisas em
diversas áreas da
engenharia
USP destacaram-se na criação de softwares e na segurança
de redes.
O Laboratório de Arquitetura e Redes de Computadores
da Escola é referência mundial em códigos de criptografia.
Paulo Barreto, pesquisador da Poli e criptologista-
chefe da empresa brasileira Scopus, participou da
criação dos algoritmos adotados para assinatura digital
da Comunidade Européia e do governo norte-americano,
depois de vencer concursos internacionais que definiram
os padrões de segurança. O Laboratório também
criou ambientes seguros para páginas de diversos bancos
na Internet e desenvolveu um sistema de segurança na
arrecadação do Imposto sobre Propriedade de Veículos
Automotores (IPVA), que acabou com as fraudes praticadas
nos computadores do Detran de São Paulo.
Tanque numérico - No campo das telecomunicações,
professores da Poli-USP foram contratados no início
dos anos 1970 pela Telebrás para ajudar a modernizar
as centrais telefônicas brasileiras, que eram analógicas.
A digitalização das centrais ampliou o acesso dos brasileiros
ao telefone e integrou o território nacional. Esse
grupo também desenvolveu, em 1976, o protótipo que
propiciou as ligações de discagem direta internacional.
Parte desses pesquisadores acabou desgarrando-se da
Escola para fundar o Centro de Pesquisas e Desenvolvimento
da Telebrás (CPqD), um dos principais dínamos
da pesquisa brasileira em telecomunicações.
A indústria naval brasileira ganhou consistência a
partir de 1956, depois de um estratégico convênio cele110
 JUNHO DE 2004  PESQUISA FAPESP 100
brado entre a Marinha e a Poli, que deu origem ao Departamento
de Engenharia Naval e Oceânica. O departamento
continua ativo, mas encontrou novas vocações.
Nos últimos quinze anos, fortaleceu os laços com a Petrobras
numa linha de pesquisa que culminou com a
criação, em 2001, de um tanque de provas numérico.
Trata-se de um simulador, dotado de um cluster de 120
microcomputadores pessoais, capaz de projetar modelos
tridimensionais de qualquer coisa: aviões, carros, navios.
“Num tanque numérico, o processamento de informações
é muito mais rápido e é possível realizar simulações
de sistemas bastante complexos”, diz o professor
Hélio Mitio Morishita, chefe do departamento. No caso
da Petrobras, o principal interesse é o desenvolvimento
de sistemas oceânicos, como plataformas de petróleo,
complexos demais para serem testados num tanque de
provas de verdade.
Marinha usou os serviços do tanque numérico
da Poli-USP antes de fazer as
adaptações no porta-aviões São Paulo,
que pertencia à França. Havia dúvidas
se a enorme embarcação caberia no
dique seco do arsenal da Marinha, no
Rio, onde seria reformada. Com
base em imagens e medidas tiradas do porta-aviões e do
dique, o tanque mostrou que era possível, sim, estacionar
o porta-aviões lá dentro – tirando uma fina, é verdade.
Só depois da simulação é que a reforma começou.
Ferramentas de realidade virtual são cada vez mais usadas
em escolas de engenharia. O Laboratório de Sistemas
Integráveis de Politécnica abriga, desde 2000, a Caverna
Digital, um complexo para realidade virtual, que
cria um ambiente interativo por meio de projeções de
imagens múltiplas. Até seis pessoas podem entrar na caverna
ao mesmo tempo e interagir com o mundo simulado
por computador. Além das aplicações nos ramos da
engenharia, a caverna também pode ser usada na medicina,
na astronomia, na produção de jogos interativos.
O elo entre as vocações do passado e as do presente
torna-se mais palpável em alguns departamentos da
Poli-USP, como o de Engenharia de Energia e Automação
Elétricas. Sob o comando do professor José Roberto
Cardoso, o Laboratório de Eletromagnetismo Aplicado
segue trabalhando com a pesquisa em tração elétrica
de ferrovias e de metrôs. “Como participamos da implantação
da primeira linha do metrô de São Paulo, o
conhecimento ficou acumulado”, diz Cardoso. Não há
muito trabalho a fazer em relação a ferrovias, que cada
vez mais perdem importância como meio de transporte.
Mas como várias capitais brasileiras estão construindo
seus metrôs, o laboratório tem sido convocado a ajudar,
fazendo simulações das composições caminhando
na linha em várias velocidades, além da quantidade de
energia necessária para fazer todo o sistema funcionar.
O laboratório também se dedica à pesquisa sobre
interferências eletromagnéticas. Ajudou, por exemplo,
fabricantes de eletrodomésticos a controlar as emissões
eletromagnéticas de seus produtos nos níveis exigidos
internacionalmente. Também auxiliou a Marinha a fazer
um estudo de compatibilidade eletromagnética do
projeto de submarino de propulsão nuclear que está
USP70
Nos primórdios da Escola Politécnica, um dos laboratórios
reunia modelos arquitetônicos de escadas e pórticos
A
PESQUISA FAPESP 100  JUNHO DE 2004  111
sendo desenvolvido no
complexo de Aramar, no
interior paulista. Trata-se
de um estudo sofisticadíssimo,
dada a profusão
de fios e circuitos previstos
para o gigantesco protótipo.
Mas a vida do laboratório
não se resume
a dar suporte para quem
precisa. A pedido da Petrobras,
foi desenvolvido
um motor tubular linear para extração de petróleo que
vai substituir os equipamentos mecânicos conhecidos
como cavalos-de-pau instalados em 9 mil poços terrestres
no país. O motor elétrico tem o dom de aumentar
a vazão dos poços e sofre um desgaste menor, pois, ao
contrário do cavalo-de-pau, não produz atrito com as
paredes do poço.
A Escola envolve-se em pesquisas de caráter teórico
com a mesma disposição com que busca soluções para
problemas prosaicos. No Departamento de Engenharia
de Transportes, testa-se o emprego de um pavimento
composto em que placas de concreto de cimento trabalham
de forma aderida ao concreto asfáltico. A técnica,
trazida nos Estados Unidos, cria uma superfície mais
resistente e ajuda na manutenção de pavimentos com
deficiências estruturais. O Departamento de Engenharia
Metalúrgica e de Materiais, o de maior produção
acadêmica da Escola, desenvolveu
um método capaz
de reciclar a poeira
de minério de ferro que
era descartada e poluía o
ambiente. Essa poeira,
obtida em grande quantidade
no processo de degradação
do minério, entupia
os fornos e era
considerada imprestável.
Num trabalho sobre o
comportamento térmico de materiais, os pesquisadores
da Poli constataram que, ao misturar a poeira de
minério de ferro com carvão, produziam-se pelotas ou
pequenos tijolos que, após um processo de cura, ficavam
duríssimos e podiam ser armazenados. O desperdício
e a poluição acabaram. Hoje as pelotas são
usadas nos fornos como matéria-prima de aço. “A pesquisa
teve grande importância na busca de processos
limpos e não poluentes na metalurgia”, diz o professor
José Deodoro Trani Capocchi, chefe do Departamento
de Engenharia Metalúrgica e de Materiais. São 400 trabalhos
científicos publicados em revistas indexadas a
cada ano. Seus pesquisadores às vezes ajudam a resolver
crimes. A pedido da Polícia Científica de São Paulo,
fazem pareceres sobre a deformação de projéteis ou
o desgaste de outros materiais, capazes de elucidar as
circunstâncias de homicídios ou acidentes.
Ramos de Azevedo
ajudou a moldar a
arquitetura paulista
Na Revolução de 32,
os engenheiros
fizeram blindados
O motor tubular elétrico, desenvolvido a pedido da Petrobras,
vai substituir bombas mecânicas de 9 mil poços de petróleo
112  JUNHO DE 2004  PESQUISA FAPESP 100
Dentro da Politécnica, também funciona o Centro Internacional
de Referência em Reuso da Água (Cirra), vinculado
ao Departamento de Engenharia Hidráulica e Sanitária.
O grupo de pesquisadores da instituição trabalha
em várias frentes, do desenvolvimento de sistemas hidráulicos
que economizem água (como uma caixa de descarga
para vaso sanitário com apenas 3 litros de água) ao
teste de estratégias de reaproveitamento de recursos hídricos,
como o uso de água não tratada na agricultura, em
sistemas de refrigeração de indústrias ou na irrigação de
áreas verdes urbanas. Também ajuda a Agência Nacional
de Águas a formular novas políticas contra o desperdício.
o rol das aplicações práticas, um
pesquisador do Cirra desenhou
um sistema de reaproveitamento
de água que servirá ao terceiro
terminal no Aeroporto de Cumbica,
em Guarulhos, a ser construído
nos próximos anos. Hoje toda
a água usada nos dois terminais do aeroporto, que recebe
14 milhões de passageiros por ano, é retirada de seu
subsolo. A construção de um terceiro terminal vai requerer
uma nova solução, pois o manancial está à beira
do esgotamento e não terá água suficiente. A proposta é
submeter a água servida a um tratamento parcial, utilizando-
a de novo para lavar a pista e resfriar o sistema
de ar condicionado do aeroporto, para citar dois exemplos.
“É possível estabelecer um uso mais parcimonioso
da água a partir de múltiplas estratégias”, diz o professor
Ivanildo Hespanhol, diretor do Cirra.
Como na maioria das carreiras, o campo de conhecimento
da engenharia expandiu-se muito nas últimas
décadas e a Escola Politécnica esforçou-se em abarcar
todos os desdobramentos, criando novos departamentos
e especializações. Mas as mudanças e oscilações do
mercado de trabalho andam tão abruptas que um
ramo da engenharia muito disputado num vestibular
pode ter seu interesse reduzido poucos anos mais tarde,
quando o estudante estiver se formando. Isso já
aconteceu várias vezes. A tradicional engenharia civil,
por exemplo, perdeu força nos anos 1980, a década
perdida em que o Brasil parou de fazer hidrelétricas e
estradas, frustrando uma geração de jovens profissionais.
Hoje a procura pela engenharia civil melhorou.
Apesar do jejum de grandes obras, abriu-se espaço
para os engenheiros, por exemplo, na expansão da
construção civil e da infra-estrutura de saneamento. A
engenharia de telecomunicações viveu o apogeu e a
queda num curtíssimo espaço de tempo. Com as privatizações,
em meados dos anos 1990, a concorrência no
vestibular explodiu, mas houve uma severa retração
em 2000 e 2001, que espantou o interesse dos candidatos.
“Nem a euforia nem a ressaca se justificavam”, diz
Paul Jean Etienne Jeszensky, professor do Departamento
de Engenharia de Telecomunicações e Controle.
“Hoje caminha-se para um equilíbrio no mercado de
trabalho, um cenário que não é tão bom nem tão ruim
como já se imaginou”, afirma.
Tais oscilações são naturais e, exceto pela decepção
que geram nos recém-formados, não trazem conseqüências
profundas. Acontece que o engenheiro politéc-
USP70
N
conta o impacto ecológico que a obra causaria.
Construída no início dos anos 1980, a usina de
Balbina, que abastece Manaus, capital do Amazonas,
é um exemplo de belíssima obra de engenharia
que perpetrou um crime ecológico,
criando um gigantesco lago raso em que espécies
de árvores apodrecem até hoje. “A formação
excessivamente técnica às vezes faz com
que o engenheiro raciocine sem levar em conta
que há gente no processo”, diz o professor
Hélio Morishita, cujo departamento, o de Engenharia
Naval e Oceânica, alterou seu currículo
e hoje exige que seus estudantes façam 24
disciplinas optativas em outras unidades da
Universidade de São Paulo.
escolha dessas disciplinas cabe
ao estudante. O melhor é que
eles tenham contato com a
sociologia, a comunicação, a
filosofia. Alguns resistem e
vão fazer as disciplinas na
Faculdade de Economia
e Administração, que tem mais afinidades
com a engenharia”, diz Morishita. O Departamento de
Engenharia Elétrica promoveu uma alteração semelhante
no currículo. A humanização na formação dos
alunos é um dos objetivos do Poli 2015, um programa
para ajustar a Escola, até o ano de 2015, aos desafios
desse início de século. Entre as metas declaradas do Poli
2015, destacam-se “a competência no relacionamento
humano e na comunicação, a postura ética e o comprometimento
cultural e social com o Brasil”. Sem abrir
mão, é claro, da excelência do ensino.
O futuro da Poli-USP também é virtual. A educação
a distância já é uma realidade. As aulas de 105 disciplinas
são gravadas em vídeo e disponibilizadas na
Internet, assim como o material didático utilizado pelo
professor. Quem faltou à aula pode assisti-la em casa,
na tela do computador. Caso o estudante virtual não
entenda a explanação, pode interagir entrando num
chat e fazendo perguntas. Se for uma dúvida que outro
aluno já teve antes (80% delas são recorrentes), a resposta
está armazenada e vem na hora. Senão, o professor
responde mais tarde, por e-mail. Os cursos e seu material
didático agora começam a ser franqueados a qualquer
pessoa que tenha computador em casa. “A idéia é
disseminar o conhecimento depositado na Poli para
outras faculdades e estudantes de engenharia, é devolver
à sociedade, da forma mais ampla possível, o investimento
que ela fez nessa escola”, diz o professor Wilson
Vicente Ruggiero. Se der certo, a escola que nasceu vinculada
à elite – os fundadores Ramos de Azevedo e
Paula Souza tiveram de ir à Europa para se formar –
terá feito um belo acerto de contas com o passado. •
PESQUISA FAPESP 100  JUNHO DE 2004  113
nico é formado, antes de tudo, para se adaptar a novas
situações, para estar pronto a solucionar problemas que
sequer podem ser imaginados hoje. “A Escola fornece
uma excelente base. A bagagem é do aluno”, diz Jeszensky.
“Preparamos profissionais para a tomada de decisões,
profissionais que estão sempre prontos a aprender
coisas novas”, diz Moacyr Martucci, presidente da
Comissão de Pesquisa.Assim como os engenheiros civis
frustrados dos anos 1980 fizeram carreiras reluzentes
dentro e fora da engenharia – o mercado financeiro, por
exemplo, abasteceu-se fartamente desses profissionais –,
a turma das telecomunicações será absorvida.Mas também
existem cursos que não conhecem crise. O de
engenharia de computação oferece duas turmas de 40
alunos a cada vestibular. Uma dessas turmas faz um
curso nos moldes tradicionais. A outra tem uma grade
curricular diferente, em que teoria e prática têm o mesmo
peso. Os módulos se alternam a cada quadrimestre
– ora o estudante dedica-se a disciplinas teóricas, ora
faz um estágio numa empresa, que a própria Escola se
encarrega de arrumar para os alunos. “O engenheiro sai
formado com uma base teórica forte e também com
uma notável experiência profissional”, diz o professor
Wilson Vicente Ruggiero, do Departamento de Engenharia
de Computação e Sistemas Digitais.
A Escola ensaia uma mudança conceitual na formação
de seus alunos. Existe uma demanda do mercado de
trabalho por profissionais com uma bagagem mais humanística.
O engenheiro de hoje precisa levar em conta
variáveis que eram relegadas antigamente. Já vai longe o
tempo em que se projetava uma hidrelétrica sem levar em
O Centro de Referência em Reuso de Água busca
soluções para combater o desperdício
A“
58  JULHO DE 2004  PESQUISA FAPESP 101
Omoldeda
excelência
acadêmica
Universidade de São Paulo (USP)
tornou-se o grande paradigma brasileiro
em excelência acadêmica
graças a um modelo semeado
pioneiramente na Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas
(FFLCH). A USP foi
criada em 1934, incorporando
notáveis escolas superiores
que já formavam
profissionais da elite paulista brasileira, como a Faculdade
de Medicina, a de Direito do largo de São
Francisco e a Politécnica. Mas na Faculdade de Filosofia,
nascida em conjunto com a universidade para
servir de amálgama interdisciplinar entre as unidades
já existentes, aplicaram-se conceitos que moldariam
o ensino superior nacional, como a indissociabilidade
do ensino e da pesquisa, o rigor científico como
método e o investimento na pesquisa básica, aquele
conhecimento desinteressado que empurra as fronteiras
do saber e produz contribuições surpreendentes.
Até a criação da USP, os catedráticos da Faculdade
de Medicina, por exemplo, eram grandes clínicos e
Na série de reportagens sobre
os 70 anos da Universidade
de São Paulo, a trajetória da
Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas,
laboratório de idéias que
transformou o ensino superior
FABRÍCIO MARQUES
USP70
A
PESQUISA FAPESP 101  JULHO DE 2004  59
SDI-SERVIÇO DE DIVULGAÇÃO / FFLCH
Estudantes no prédio
da Geografia e da
História, departamentos
que permaneceram
na faculdade após
a reforma universitária
60  JULHO DE 2004  PESQUISA FAPESP 101
cirurgiões que, na maior parte do tempo, salvavam vidas.
Só alguns poucos faziam pesquisa de qualidade. A
Politécnica e a Faculdade de Direito abasteciam o país de
engenheiros e advogados, mas seus professores dividiam-
se entre a formação dos alunos e suas atividades
profissionais particulares. Com honrosas exceções, destacavam-
se mais por transmitir um saber tecnológico do
que por produzir conhecimentos básicos. “Até o advento
da Faculdade de Filosofia e da USP, não era muito claro
o limite entre o cientista e o erudito, entre o pesquisador
e o diletante”, diz o professor de sociologia Sedi
Hirano, atual diretor da FFLCH. ”Até mesmo a idéia de
que a atividade científica é uma vocação, uma profissão
com dedicação exclusiva, só se consolidou no país a partir
da experiência da Filosofia”, afirma.
oje a FFLCH tem 10.235 estudantes
de graduação e 2.117 de pós-graduação
e congrega 11 departamentos
da área de Humanidades: Letras
Clássicas, Letras Modernas, Letras
Orientais, Lingüística, Teoria Literária,
Filosofia,História, Geografia,
Antropologia, Sociologia e Ciência Política.Mas, em seus
primórdios, praticamente todo o conhecimento cabia
dentro da instituição. Ela surgiu em 1934 com um nome
abrangente, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
(FFCL), reunindo também os núcleos de Ciências Naturais,
Química, Física e Matemática. Era uma “universidade
em miniatura”, como definiu o sociólogo Florestan
Fernandes (1920-1995) no livro A questão da USP (1984).
Sob os auspícios da oligarquia paulista, a nascente Faculdade
de Filosofia foi beber diretamente da fonte européia.
O primeiro diretor da instituição, Theodoro Augusto Ramos,
matemático da Escola Politécnica, foi encarregado
de contratar dezenas de professores da França, da Itália,
da Alemanha e de Portugal. As missões estrangeiras
trouxeram hábitos que marcariam a cultura universitária
do país, como a renovação anual dos cursos e o planejamento
rigoroso das aulas. Havia professores já consagrados
e jovens talentos que construíram reluzentes
carreiras acadêmicas nas décadas seguintes.
A maioria veio da França, como o antropólogo Claude
Lévi-Strauss, o historiador econômico Fernand Braudel,
o sociólogo Roger Bastide ou os professores de filosofia
Martial Guéroult e Jean Maugüé, um grande
influenciador do estudo da psicologia. A Itália mandou,
entre outros, seu grande poeta Giuseppe Ungaretti e o físico
Gleb Wataghin, russo de nascimento, um dos responsáveis
pelo estabelecimento da física experimental
como atividade científica no Brasil. A Alemanha compartilhou
com o Brasil sua base teórica em química, enviando
professores como Heinrich Rheinboldt. O português
era idioma raríssimo nas salas de aulas, ministradas, em
geral, em francês ou italiano. Parecia uma missão colonizadora,
mas a realidade era mais complexa que as aparências.
O fato é que a sociedade e a comunidade acadêmica
de São Paulo mostraram-se maduras para absorver
a contribuição européia. O escritor modernista Mário
de Andrade, por exemplo, associou-se a Claude Lévi-
Strauss na fundação da Sociedade de Etnografia e Folclore.
Logo os mestres europeus estariam cercados de
discípulos brasileiros, como o professor francês de geografia
humana Pierre Monbeig e o estudante Caio Prado
Júnior, ou o físico ítalo-russo Gleb Wataghin e os jovens
Mário Schenberg e Marcelo Damy. Alguns mestres
europeus passaram poucos anos no Brasil, outros permaneceriam
até meados dos anos 1960 – inaugurando
uma tradição de intercâmbio internacional de professores
e estudantes que é forte até hoje (a faculdade mantém
40 convênios com instituições no exterior). Mas,
como estava previsto, os docentes estrangeiros cederiam
espaço paulatinamente para os brasileiros que ajudaram
a formar, caso do físico Oscar Sala, do geneticista Crodowaldo
Pavan, do sociólogo Florestan Fernandes ou do
geógrafo Aziz Ab’Saber.
USP70
H
FOTOS ARGUS DOCUMENTAÇÃO / CCS / USP
PESQUISA FAPESP 101  JULHO DE 2004  61
Ousado e grandiloqüente, o projeto da Faculdade de
Filosofia sofreu, é certo, turbulências na decolagem.Nos
idos de 1936 e 1937, chegou-se a discutir o fechamento
da instituição, uma vez que os aspirantes a uma vaga na
USP continuavam tomando o caminho da Faculdade de
Medicina, da Escola Politécnica e da Faculdade de Direito,
provavelmente assustados com a exótica experiência
em curso na Faculdade de Filosofia. Nos dois primeiros
anos de existência da instituição, era moda entre a elite
paulistana freqüentar as aulas da Filosofia, para melhorar
o quórum das salas. Deve-se à engenhosidade do
educador, sociólogo e historiador Fernando de Azevedo,
que fora diretor da Instrução Pública de São Paulo e viria
a comandar a faculdade nos anos 1940, a solução que
resgatou a instituição das dificuldades iniciais. Em vez
de formar a elite, como faziam as unidades da USP mais
antigas, a nova faculdade voltou-se para a classe média.
Um decreto determinou que professores de escolas primárias
que passassem no vestibular dos cursos da Filosofia
e tivessem sempre nota superior a 7 poderiam afastar-
se das salas de aulas e continuariam a receber o
salário de docente enquanto estudavam, artifício conhecido
como comissionamento. Dessa forma, a faculdade
encheu-se de ex-normalistas para formar bons professores
secundários. “Foi graças a esse decreto que eu pude
me formar”, recorda-se o historiador José Sebastião Witter,
professor-emérito da FFLCH. Em 1953, Witter formara-
se numa Escola Normal de Mogi das Cruzes e, depois
de trabalhar cinco anos como professor primário,
ingressou na Faculdade de Filosofia em 1958. “A situação
do ensino era completamente diferente. As escolas
normais davam uma excelente formação e tinham mestres
competentíssimos”, diz Witter. A vocação de formar
professores mantém-se até hoje, sobretudo em carreiras
como letras, história e geografia, embora a figura do comissionamento
tenha sido abandonada.
As décadas de 1950 e 60 foram a época de ouro da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, convertida no
centro do pensamento brasileiro. Em 1941, a efervescência
ganhou um endereço: a Faculdade de Filosofia, que
vagara por diversos prédios, alguns emprestados, fixouse
no lendário edifício da rua Maria Antônia.Nos corre-
No dia 3 de outubro
de 1968, a batalha entre
estudantes da Faculdade
de Filosofia e adeptos
do Comando de Caça
aos Comunistas instalados
na Universidade Mackenzie
deixou um aluno morto
e causou a depredação
do prédio da
rua Maria Antônia
62  JULHO DE 2004  PESQUISA FAPESP 101
dores, cruzavam-se as grandes referências acadêmicas
como Antonio Candido, que se tornaria o patrono da
teoria literária no Brasil, o sociólogo Florestan Fernandes,
além de Sérgio Buarque de Holanda, o historiador
que criou o conceito do homem cordial e se incorporou
à faculdade no final dos anos 1950. Orbitavam ao redor
de dona Floripes, funcionária que anotava recados para
todos na portaria da Maria Antônia. A época é marcada
pelos trabalhos sobre relações raciais no Brasil, liderados
por Florestan, Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso,
que refutaram a idéia do paraíso racial brasileiro,
ou do livro Os parceiros do Rio Bonito, de Antonio Candido,
um clássico da sociologia brasileira a respeito dos
caipiras marginalizados do interior paulista.
ambém foi nessa fase que a faculdade
transformou-se num caldeirão de
efervescência política. Vicejava entre
professores e alunos o que ficaria conhecido
como “pensamento radical”,
com base no qual os intelectuais, na
maioria de orientação marxista, viamse
numa esfera à parte dos políticos e do povo e reivindicavam
para si a missão de comandar as mudanças da
sociedade.O primeiro grande movimento ocorreu entre
1955 e 1962, quando a Faculdade de Filosofia foi o principal
pólo de debates e críticas à privatista reforma do
ensino proposta pelo político Carlos Lacerda. O bastião
em defesa da escola pública era o prédio da rua Maria
Antônia, Florestan Fernandes à frente. Após a deposição
de João Goulart, os militares encontraram na Faculdade
de Filosofia, com seus professores e alunos com forte inclinação
esquerdista, um aguerrido foco de desafio à ditadura.
“A faculdade se distanciou muito daquilo que as
oligarquias pensaram para ela”, disse, num recente discurso
nas comemorações dos 70 anos da faculdade, o
professor Antonio Candido. “Em 1964, todas as congregações
da USP apoiaram o golpe militar,menos a Faculdade
de Filosofia. E não porque era de esquerda, mas
porque era contra a opressão.”
O resultado desse embate entrou para os livros de
história: no dia 3 de outubro de 1968, uma batalha campal
entre lideranças estudantis da Faculdade de Filosofia
e seguidores da organização direitista Comando de Caça
aos Comunistas instalados na vizinha Universidade Mackenzie
terminou com a morte de um estudante secundarista,
três universitários baleados, dezenas de feridos e
USP70
Os professores
europeus
que fundaram a
faculdade (ao lado) e
a primeira turma de
alunos, formada em
1936 (página ao lado).
Nos primeiros anos, a
instituição não atraiu
um contingente
expressivo de alunos.
A solução foi
oferecer vantagens
para que professores
primários fizessem
curso superior
Em 17 de março de 2004, a comemoracão
dos 70 anos da FFLCH reuniu os mestres
Octavio Ianni (que morreria três meses
depois), Alfredo Bosi, Antonio Candido,
Sedi Hirano e Marilena Chauí
T AE
sima linha e seguiu como um pólo importante do pensamento
acadêmico.
Recentemente, foram aprovados vários projetos temáticos
da FAPESP, sob coordenação dos professores da
Faculdade de Filosofia, tratando de temas como a filosofia
do século 17, filosofia e história da ciência e moral, política
e direito. A faculdade que se notabilizou pela efervescência
política dos anos 1960 forneceu quadros para o
poder após a redemocratização. Nos anos 1990, com a
ascensão do professor de sociologia cassado pelo AI-5, Fernando
Henrique Cardoso, à Presidência da República,
egressos da FFLCH ocuparam cargos importantes, desde
o Ministério da Cultura (Francisco Weffort) à formulação
de políticas de educação. A circunstância se repete,
com outros nomes, naturalmente, no governo Lula – do
porta-voz André Singer ao presidente do Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Glauco Arbix.
A produção dos mais de 300 alunos de graduação
com projetos de iniciação científica abastece uma coleção
de livros, batizada de Primeiros Estudos, editada
pela própria faculdade. “São trabalhos de qualidade,
que orgulham a faculdade”, diz o presidente da
Comissão de Pesquisa,Moacyr Novaes. O primeiro volume,
publicado em 2001, reúne uma coleção de textos
sobre as políticas de industrialização em São Paulo
nos anos 1990, coordenado pelo professor de sociologia
Glauco Arbix. O segundo, lançado em 2003, discorre
sobre o pensamento de Jean-Paul Sartre. Dos 24
programas de pós-graduação, 16 têm ótimo conceito,
sendo que três têm a nota máxima da avaliação da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pesssoal de Nível
Superior (Capes): Literatura Brasileira, Semiótica e
Lingüística Geral, e Sociologia. O rigor metodológico
e a curiosidade científica semeados pelas missões européias,
como se vê, não perderam o fôlego ao longo
dos 70 anos de existência da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da USP. •
PESQUISA FAPESP 101  JULHO DE 2004  63
a depredação da sede da FFLCH.Mas o maior golpe viria
em seguida, com a aposentadoria compulsória, com
base no Ato Institucional 5, das vozes mais prestigiadas
da faculdade, como José Arthur Giannotti, Emília Viotti
da Costa, Octavio Ianni, Florestan Fernandes, Fernando
Henrique Cardoso, entre outros. A FFLCH sofreu uma
mudança de perfil. Com a reforma universitária, perdeu
os últimos departamentos ainda ligados à área de ciências,
fixando-se nas humanidades. Também foi expulsa
do ambiente integrador da Maria Antônia para dispersar
alunos e professores num conjunto de prédios com
41 mil metros quadrados na Cidade Universitária. Destituída
de suas cabeças mais famosas e distante do modelo
original, a FFLCH mostrou, nos anos 1970 e 80, que
continuava capaz de produzir massa crítica de primeirís-
SDI-SERVIÇO DE DIVULGAÇÃO / FFLCH
AE
54  AGOSTO DE 2004  PESQUISA FAPESP 102
O Brasil que
as Arcadas
vislumbraram
Faculdade de Direito do largo de São
Francisco, a mais antiga das unidades
que há sete décadas deram origem
à Universidade de São Paulo
(USP), preserva os sinais de vigor
que a transformaram em paradigma
do ensino superior já
nos tempos em que o Brasil
era um império dos trópicos
e a cidade de São Paulo
não passava de burgo bucólico e provinciano. No
último ranking do Provão, a faculdade aparecia em
primeiro lugar, seguida por escolas jurídicas de Minas
Gerais, do Paraná, do Espírito Santo, da Bahia, do Rio
de Janeiro, de Brasília e da cidade paulista de Franca.
Pode-se afirmar que todas essas escolas alcançaram excelência
mirando-se no exemplo da instituição paulistana.
Também é certo que elas aliviaram de responsabilidades
históricas a “velha e sempre nova”Academia,
como gostam de tratá-la seus bacharéis.
Aberta em 1828 nas instalações de um antigo convento
franciscano no centro de São Paulo, a faculdade
por muito tempo representou uma das escassas
Na série de reportagens sobre
os 70 anos da Universidade
de São Paulo, a marca
da Faculdade de Direito
do largo de São Francisco,
formadora das elites
no Império e na República
FABRÍCIO MARQUES
USP70
A
MIGUEL BOYAYAN
56  AGOSTO DE 2004  PESQUISA FAPESP 102
opções da oligarquia nacional para ilustrar seus filhos.
Alunos de toda parte aportavam em São Paulo. Dos 33
inscritos na primeira turma, só nove moravam na capital;
oito vieram do rico interior agrícola da província,
dez do Rio, quatro de Minas Gerais e dois da Bahia. Essas
levas pioneiras de estudantes seriam as primeiras a
acalentar o sonho cosmopolita da futura metrópole. A
cidade fora escolhida para acolher o curso jurídico com
o argumento de que não oferecia diversões a distrair os
estudantes e o custo de vida era baixo. Isso não durou
muito tempo. Entre as décadas de 1830 e 1870 – antes
que a riqueza do café e o advento das ferrovias transformassem
a cidade – São Paulo foi um território de estudantes
e a presença deles estimulou a construção dos
primeiros hotéis, teatros e casas de diversão.
faculdade foi criada, pouco mais de cinco
anos após a proclamação da Independência,
com a missão de forjar uma elite de
homens públicos capaz de gerir a nação
– a Universidade de Coimbra passara
a hostilizar os aspirantes a bacharéis
oriundos da colônia desgarrada. Se a
meta era preparar os “homens hábeis” que comandariam
o país, se a intenção era conferir base intelectual à
elite governante, pode-se dizer que o objetivo rendeu
frutos fartos e duradouros. Até pelo menos a Segunda
Guerra Mundial, a Academia foi o principal pólo de formação
de quadros para a política, a Justiça e o jornalismo
no país. Em março de 1868, o vapor Santa Maria desembarcou
no porto de Santos trazendo dois estudantes
baianos mal saídos da adolescência que marcariam a trajetória
da faculdade e a história do Brasil. Um deles era
Ruy Barbosa, o jurista que moldaria a Constituição republicana,
o poliglota que representaria o Brasil na Conferência
de Haia. O outro era o poeta Castro Alves – que
morreria de tuberculose três anos mais tarde, mas formou
o trio de poetas românticos com os colegas Fagundes
Varella e Álvares de Azevedo. O jovem fluminense
Juca Paranhos também estudou lá. Filho de um ministro
do Império, o aluno Juca, o lendário barão do Rio Branco,
seguiria carreira política e diplomática e teria um papel
na delimitação das fronteiras brasileiras no sul, no
extremo norte e no extremo oeste do país. No final do
século 19, estima-se que sete em cada dez deputados
brasileiros haviam passado pelas Arcadas – outro apelido
da faculdade, referência aos sustentáculos da construção
de taipa do convento franciscano, reconstituídos
no novo prédio, erguido na década de 1930.
A República Velha (1889-1930) foi, antes de tudo,
uma República de bacharéis do largo de São Francisco.
Oito presidentes dessa fase formaram-se nas Arcadas:
USP70
O poeta Castro Alves, num jornal
abolicionista que circulou na Academia
Ruy Barbosa (o segundo da dir. para a esq.),
na foto de Militão de Azevedo, em 1879
REPRODUÇÕES: ARCADAS - HISTÓRIA DA FACULDADE DE DIREITO DO LARGO DE SÃO FRANCISCO
A
PESQUISA FAPESP 102  AGOSTO DE 2004  57
Prudente de Moraes, Campos
Salles, Afonso Pena,
Rodrigues Alves, Delfim
Moreira, Venceslau Brás,
Arthur Bernardes e Washington
Luís. Também sairiam
da instituição 45 governadores
da Província e
do Estado de São Paulo.
No início do século 20, a
Academia passaria a dividir
com outras instituições,
como a Faculdade de
Medicina e a Escola Politécnica,
a primazia de formar
a elite de São Paulo.
Igualmente, os bacharéis
foram cedendo espaço na
gestão pública para a tecnocracia
(as demandas do
país tornavam-se mais complexas)
e para os militares
(seus antagonistas, que chamavam
os políticos de “casacas”).
Curiosamente, a
faculdade só voltou a produzir
outro chefe da nação
– mesmo assim, em experiência
fugaz – nos anos
1960: foi na militância estudantil
das Arcadas que Jânio Quadros ensaiou sua
retórica. A massificação do ensino superior não ofuscou
a importância da faculdade, que continuou a atrair
a elite dos candidatos no vestibular e é um raríssimo
exemplo de aprovação maciça nos exames da seção
paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O
país hoje tem mais de 700 escolas de direito e 400 mil
advogados.
A efervescência do largo de São Francisco deixou
marcas até onde menos se imagina. O sanduíche bauru
ganhou esse nome porque era o preferido do estudante
de direito Casemiro Pinto Neto no restaurante Ponto
Chic, centro de São Paulo. Casemiro, conhecido como
Bauru – a cidade paulista onde nasceu –, cedeu o apelido
ao sanduíche. O bordão “é pique, é pique, é hora, é hora,
é hora, rá-tim-bum”, incorporado no Brasil ao Parabéns
a você, é uma colagem de bordões dos pândegos estudantes
das Arcadas da década de 1930.“É pique, é pique”
era uma saudação ao estudante Ubirajara Martins, conhecido
como “pic-pic” porque vivia com uma tesourinha
aparando a barba e o bigode pontiagudo. “É hora, é
hora” era um grito de guerra de botequim.Nos bares, os
estudantes eram obrigados a aguardar meia hora por
uma nova rodada de cerveja – era o tempo necessário
para a bebida refrigerar em barras de gelo. Quando dava
o tempo, eles gritavam: “É meia hora, é hora, é hora, é
Estudantes das Arcadas visitam, em 1908,
o barão do Rio Branco (ao centro), ex-aluno
O novo prédio, erguido nos anos 1930,
refez as arcadas do velho convento
58  AGOSTO DE 2004  PESQUISA FAPESP 102
hora”. “Rá-tim-bum” , por
incrível que pareça, referese
a um rajá indiano chamado
Timbum, ou coisa
parecida, que visitou a faculdade
– e cativou os estudantes
com a sonoridade
de seu nome. O amontoado
de bordões ecoava nas
mesas do restaurante Ponto
Chic, com um formato
um pouco diferente do que
se conhece hoje: “Pic-pic,
pic-pic; meia hora, é hora,
é hora, é hora; rá, já, tim,
bum”. Como isso foi parar
no Parabéns a você? “Os estudantes
costumavam ser
convidados a animar e prestigiar
festas de aniversário.
E desfiavam seus hinos”,
conta o atual diretor da faculdade,
Eduardo Marchi,
de 44 anos, que relembrou
a curiosidade em seu discurso
de posse, dois anos
atrás. Em 1934, a faculdade
deixou de ser uma escola
federal, foi incorporada à
Universidade de São Paulo
– mas manteve-se ciosa das tradições. As tentativas de
transferir a sede para a Cidade Universitária foram rechaçadas
– os alunos chegaram a arrancar a pedra fundamental
do que seria o novo prédio.
defesa do ideal da liberdade é uma marca
da instituição – e também a origem de um
paradoxo histórico. Os estudantes do
largo de São Francisco e seu combativo
Centro Acadêmico 11 de Agosto engajaram-
se em boa parte das lutas democráticas,
do abolicionismo à
Revolução Constitucionalista de 1932, da liberdade de
imprensa ao movimento pelos direitos humanos, da
oposição ao Estado Novo à campanha pelas eleições diretas
e pela Constituinte com participação popular, nos
anos 1980. O alemão Julio Frank e o italiano Líbero Badaró,
ativistas liberais e professores do curso preparatório
para a faculdade no Primeiro Reinado, tornaram-se
ícones das primeiras gerações de alunos. “Mas a origem
elitista transformava boa parte dos alunos inflamados
em ardentes defensores da ordem quando alçavam carreira
na política e na magistratura”, diz a historiadora Ana
Luiza Martins, autora do livro Arcadas – História da Faculdade
de Direito do largo de São Francisco, em parceria
com a também historiadora Heloisa Barbuy.
Na história recente, bacharéis do largo de São Francisco
tiveram papel importante na redemocratização do
país – Ulysses Guimarães, o artífice da Constituição de
1988, e o ex-senador e governador André Franco Montoro
são egressos da instituição. O corpo docente também
teve nomes como Goffredo da Silva Telles, que, em 1977,
ousou exigir a volta do Estado de direito na comemoração
dos 150 anos dos cursos jurídicos do país. Mas alguns
professores emprestaram seu brilho acadêmico a
causas liberticidas, caso dos ex-diretores da faculdade
Luiz Antonio da Gama e Silva, ministro da Justiça do
marechal Costa e Silva e redator do Ato Institucional 5,
e Alfredo Buzaid, que sucedeu Gama e Silva no governo
do general Emílio Médici, o mais opressivo do período
militar. Independentemente das divergências
doutrinárias ou ideológicas, os professores sempre cultivaram
os civilizados preceitos do respeito e da tolerância.
“Há muito se diz que a congregação da faculdade é
o lugar onde se aprende a divergir polidamente”, diz o
professor aposentado e ex-diretor da faculdade Dalmo
de Abreu Dallari, ativista dos direitos humanos desde os
anos 1970.
A presença de alunos e mestres da faculdade no cenário
jurídico sempre foi marcante – Clóvis Bevilacqua,
João Mendes Júnior, Teixeira de Freitas e Vicente Rao
são exemplos. O Código Civil brasileiro, criado em 1916
USP
FOTOS: RÔMULO FIALDINI/ ARCADAS - HISTÓRIA DA FACULDADE DE DIREITO DO LARGO DE SÃO FRANCISCO
No vitral das escadarias, alegoria
inspirada em pintura de Rafael
A
70
O que também atrapalha
a pesquisa é a pouca
adesão dos docentes da Faculdade
de Direito ao regime
de dedicação exclusiva.
Apenas 10% dos 130 professores
trabalham em
tempo integral. A tradição
brasileira é a dos docentes
com pés fincados no mercado
de trabalho – juízes,
promotores, donos de escritórios
de advocacia –,
capazes de mostrar a realidade
da profissão aos estudantes.
A dupla militância
é uma realidade desde que
a faculdade foi fundada.
Na década de 1860, apenas
dois terços dos 17 professores
encontravam-se sempre
em São Paulo – magistrados
ou políticos, vários deles
estavam desempenhando
funções de ministro do
Império ou de governador
de províncias. Em países
como os Estados Unidos e
a Alemanha, um dos alicerces
mais importantes da
pesquisa jurídica é a dedicação integral dos docentes.
É certo que as Arcadas estão empenhadas em transformar
progressivamente esse panorama.Cresce o número
de convênios com instituições estrangeiras, como a
Università degli Studi di Roma “La Sapienza” e Universtà
Statale di Milano, na Itália; Université de Lyon II, na
França; Universidade de Lagos, na Nigéria; University of
Texas, Austin, nos EUA, entre outras. Até dez anos atrás,
praticamente não havia estudantes de graduação realizando
projetos de iniciação científica. Hoje 2% dos alunos
já têm bolsas.
A partir de 2005, os estudantes de graduação serão
obrigados a produzir uma tese para obter o grau de
bacharel. A idéia da chamada Tese de Láurea, inspirada
no ensino superior italiano, busca, entre outras finalidades,
combater um efeito nocivo que o mercado de
trabalho tenta impor à faculdade. Os estudantes hoje
são convidados a cumprir estágios em escritórios de advocacia
cada vez mais precocemente, alguns até no segundo
ano de curso – comprometendo o tempo de
estudo. A obrigação de fazer a tese vai reforçar o vínculo
dos alunos com a instituição, tornando a formação
menos prática e mais reflexiva. Continua valendo
uma máxima que todos os dirigentes das Arcadas repetiram
orgulhosamente: o objetivo da Faculdade de Direito
da USP é formar juristas, não bacharéis. •
PESQUISA FAPESP 102  AGOSTO DE 2004  59
sob a presidência de um aluno das Arcadas, Venceslau
Brás, foi reformado sob a coordenação de um jurista forjado
na instituição, Miguel Reale. Na década de 1970,
com a criação dos cursos de pós-graduação, a faculdade
assumiu a missão de produzir pesquisa.Não é uma tarefa
simples – e nessa dificuldade a instituição tem a companhia
dos demais cursos do país.
oa parte da pesquisa em direito no
Brasil e na faculdade ainda se debruça
sobre a análise de doutrinas e de
questões de jurisprudência, sem uma
pesquisa de campo ou base filosófica
ou sociológica”, diz o professor
Antonio Luis Chaves Camargo, presidente
da Comissão de Pesquisa da faculdade. Eduardo
Bittar, professor associado do Departamento de Filosofia
e Teoria Geral do Direito – e um estudioso da questão
da pesquisa jurídica –, complementa: “As pesquisas empíricas,
os estudos de caso, as pesquisas documentais, as
análises sociológicas ainda são esteios negligenciados
pela cultura jurídica nacional”. Não deixa de ser curioso,
pois o direito compreende uma forte atividade intelectual,
como se pode perceber no vigoroso mercado de livros
jurídicos (muitos deles escritos por docentes do largo
de São Francisco).
B “
O vermelho do Salão Nobre homenageia d. Pedro II,
referência ao papel da faculdade durante o Império
A receita da qualidade
Na série de reportagens
sobre os 70 anos da
Universidade de São Paulo,
a movimentada trajetória
da Faculdade de Ciências
Farmacêuticas,
que soube superar crises
e consolidou-se como
endereço de pesquisa
FABRÍCIO MARQUES
USP70
A faculdade hoje: laboratórios
renovados e 96% dos professores
com dedicação integral
PESQUISA FAPESP 103  SETEMBRO DE 2004  53
FOTOS EDUARDO CESAR
54  SETEMBRO DE 2004  PESQUISA FAPESP 103
ustiça se faça à Faculdade de Ciências Farmacêuticas
da Universidade de São Paulo:
em quase 106 anos de existência, a instituição
exibiu uma inesgotável capacidade de
superar dificuldades e responder a desafios.
Fundada em 12 de outubro de 1898
como Escola Livre de Pharmacia de São
Paulo, manteve-se de pé em seus primórdios
graças à abnegação dos fundadores.
Médicos ou membros da Sociedade Pharmacêutica
Paulista, eles davam aulas de
graça – ou recebendo quantias simbólicas
– até que o orçamento da instituição saísse do vermelho.
A criação da escola estava prevista havia mais de 20
anos, mas foi graças ao grupo, liderado pelo médico
fluminense Bráulio Gomes e o farmacêutico Pedro
Baptista de Andrade, que a idéia vicejou, fazendo surgir
o quarto curso de farmácia do país e o primeiro de
São Paulo. Logo apareceram novas demandas. O governo
da província delegou à escola a tarefa de submeter
a exames aspirantes a dentistas e parteiras “enquanto
não existissem no estado cursos especiais de arte dentária
e de partos”. Pois em 1902 a instituição chamou
para si a tarefa de formar esses profissionais, tornandose
Escola de Pharmacia, Odontologia e Obstetrícia. As
duas novas carreiras se desmembrariam ao longo do
tempo – a Obstetrícia desgarrou-se em 1911 e a Odontologia
em 1962.
A excelência da Faculdade de Ciências Farmacêuticas
se explica, de certo modo, por sua capacidade de se
reinventar. Por muito pouco, o curso não fechou as
portas na década de 1920. A concorrência com outras
escolas de farmácia e um escândalo que cassou o credenciamento
federal da faculdade fizeram com que os
alunos debandassem e professores pedissem demissão,
desinteressados de trabalhar numa instituição sem licença
para funcionar. Os bens da escola foram seqüestrados,
e, em 1932, o médico e anatomista Benedicto
Montenegro foi designado interventor. No ano seguinte,
o governo federal restabeleceu o credenciamento.
Montenegro foi personagem-chave na reabilitação da
faculdade. Colocou-a para funcionar e, algum tempo
depois, convenceu o governo paulista a incorporá-la ao
projeto da Universidade de São Paulo. Em 1934, a Faculdade
de Pharmacia e Odontologia de São Paulo deixou
de existir. Em seu lugar foi criada a Faculdade de
Pharmacia e Odontologia da Universidade de São Paulo.
Na prática, alunos e professores integraram-se aos
USP70
O prédio da rua Três Rios, na bucólica São Paulo de
1927: uma crise por pouco não fechou a escola
J
FOTOS ARQUIVO FACULDADE DE CIÊNCIAS FARMACÊUTICAS DA USP
PESQUISA FAPESP 103  SETEMBRO DE 2004  55
Miritello Santoro, presidente da Comissão de Pesquisa
da faculdade.
Os quatro departamentos dedicam-se a linhas de
pesquisa inovadoras no país, cuja relevância também
pode ser medida pela aplicação prática que terão na
vida e na saúde dos brasileiros. A equipe do professor
Jorge Mancini Filho, do Departamento de Alimentos e
Nutrição Experimental, estuda desde o final dos anos
1980 substâncias antioxidantes naturais encontradas
em alimentos como o dendê, a castanha do caju, a castanha-
do-pará, o alecrim ou o orégano. O objetivo, a
princípio, era testar a utilização dessa matéria-prima
em substituição a antioxidantes sintéticos, usados para
conservar alimentos e suspeitos de fazer mal à saúde
humana. A pesquisa foi ganhando importância ao longo
dos anos 1990, enquanto acumulavam-se evidências
de que os antioxidantes podem ajudar a prevenir doenças.
Mostrou-se, por exemplo, que é possível enriquecer
alimentos, como o pescado, com substâncias antioxidantes
– dependendo da dieta que se dê ao peixe. Com
isso, a carne é enriquecida nutricionalmente e demora
mais para deteriorar.
O professor Franco Lajolo, estudioso dos alimentos
funcionais, aqueles que têm propriedades terapêuticas
Aula com o professor Henrique Tastaldi, na década
de 1950: vinculada à USP, a faculdade floresceu
quadros da USP, assim como o prédio na rua Três Rios,
no bairro do Bom Retiro, centro de São Paulo, foi desapropriado
e incorporado ao patrimônio da universidade.
Garantia-se a continuidade do projeto acalentado
pela Sociedade Pharmacêutica Paulista de formar
“moços capazes de trabalhar em química, habilitados
para a indústria e com coragem e conhecimentos bastantes
para se enfrentarem com as dificuldades de análises
sérias e importantes”, como propôs um editorial
de maio de 1895 da Revista Pharmacêutica, órgão oficial
da entidade.
Nos últimos 70 anos, período em que sua trajetória
vinculou-se a à USP, a Faculdade de Ciências Farmacêuticas
não se limitou a formar mão-de-obra. Consolidou-
se como referência nacional em ensino, pesquisa
e pós-graduação. Com 800 alunos de graduação, 250
de mestrado e 200 de doutorado, a instituição conta
hoje com 80 docentes – 98% doutores e 96% em regime
de dedicação integral à docência e à pesquisa. Em
2003 teve uma produção de 102 artigos em periódicos
publicados no país e 91 no exterior. “O objetivo é publicar
cada vez mais e formar recursos humanos.Muitos
dos nossos mestres e doutores vão lecionar em outras
universidades”, diz a professora Maria Inês Rocha
áreas, como na de fármacos com atividade contra a doença
de Chagas, no diagnóstico de cisticercose, uma parasitose,
ou em marcadores genéticos de diagnóstico.
“Nos últimos 15 anos, investimentos na renovação de
laboratórios, feitos pelo Banco Interamericano de
Desenvolvimento, a FAPESP e o CNPq, deram lastro
ao salto qualitativo”, diz o professor Jorge Mancini, exdiretor
da faculdade.
A Faculdade de Ciências Farmacêuticas foi um
exemplo de integração à Universidade de São Paulo.Ao
contrário de outras unidades que já existiam antes do
advento da USP, como as faculdades de Medicina e de
Direito, trocou sem reclamações seu endereço tradicional,
no bairro do Bom Retiro, por uma área de 80 mil
metros quadrados na lamacenta Cidade Universitária do
ano de 1966. “Apesar das dificuldades, o campus aparecia
como o lugar ideal para o desenvolvimento de atividades,
sem ruídos, contrastando com as salas de aula da
rua Três Rios, constantemente perturbadas pelo tráfego
pesado de caminhões”, registrou a professora catedrática
Maria Aparecida Pourchet-Campos em seu lie
preventivas, produziu contribuições
importantes, por exemplo, para
a compreensão do metabolismo
das frutas depois de colhidas e ajudou
a desvendar os processos bioquímicos
que as tornam doces e
macias. A professora Silvia Cozzolino
lidera pesquisas sobre a disponibilidade
de ferro em alimentos e
seu uso nutricional. Uma delas foi
um estudo sobre ingestão média
diária de alguns minerais em dietas
brasileiras, conforme região, faixa
etária e condição social. Os menores
valores de ingestão de ferro
estavam nas dietas de idosos de casas
de repouso de São Paulo, com
5,4 miligramas por dia (mg/dia), e
na dieta de uma população de baixa
renda de Santa Catarina, com
6,4 mg/dia. O ideal é o consumo
diário por adulto de 15 mg/dia.
o Departamento
de Análises
Clínicas e Toxicológicas,
destacam-se
trabalhos como
os da professora
Ana Campa, que, em parceria
com o Instituto de Química
da USP, ajudou a desenvolver uma
tecnologia para diagnósticos clínicos
baseados na utilização de reações
que emitem luz e permitem mensurar o nível de
várias enzimas de interesse laboratorial. A professora
Maria Inês Rocha Miritello Santoro, do Departamento
de Farmácia, pesquisa, há mais de uma década, a separação
enantiomérica empregando a cromatografia líquida
de alta eficiência com fase quiral. Trata-se de
uma técnica de controle de qualidade de medicamentos
capaz de separar moléculas que apresentam os mesmos
grupamentos químicos como radicais de um átomo
de carbono – porém com uma configuração em que
uma é a imagem espelhada da outra. A distinção dos
dois tipos de molécula é importante porque, normalmente,
apenas uma delas apresenta efeito terapêutico.
Em alguns casos, a outra molécula, além de não ter
efeito farmacêutico, pode apresentar propriedades tóxicas.
Com a técnica, pode-se separar e quantificar os
dois tipos de compostos.
Tais exemplos são apenas uma amostra das pesquisas
feitas no conjunto de blocos de concreto, situado na
avenida Linneu Prestes (ex-diretor da instituição), na
Cidade Universitária. Há trabalhos em muitas outras
56  SETEMBRO DE 2004  PESQUISA FAPESP 103
USP
N
70
FOTOS ARQUIVO FACULDADE DE CIÊNCIAS FARMACÊUTICAS DA USP
sede também foi palco de eventos
históricos, como a premiação, com
o título de doutor honoris causa, de
Alexander Fleming, o pai da penicilina,
em visita ao Brasil no ano
de 1954. Os estudantes foram em
comitiva à estação de trem no
bairro do Brás recepcionar Fleming
e ficaram surpresos com a
concentração de populares. Mas o
pai da penicilina passou despercebido
– o povo aguardava a chegada
da Seleção Brasileira de Futebol,
liderada pelo craque Leônidas
da Silva.
ambém nos anos
1960, aposentaram-
se professores
que haviam moldado
a faculdade
após o ingresso na
USP. São nomes
como Carlos Alberto Liberalli,
Henrique Tastaldi,Aristóteles Orsini
e Walter Leser. A transformação
da instituição seria coroada na virada
para a década de 1970, com a
reforma universitária. A Faculdade
de Farmácia e Bioquímica passou a
denominar-se Faculdade de Ciências
Farmacêuticas, e deflagrou-se
uma reestruturação que deu origem
aos quatro atuais departamentos:
Farmácia, Alimentos e
Nutrição Experimental, Análises
Clínicas e Toxicológicas e Tecnologia
Bioquímico-Farmacêutica. “A
reforma permitiu uma necessária
reorganização do currículo”, diz Jorge Mancini. “A pesquisa,
antes da reforma, não era intensa como hoje”,
afirma o professor.
A imagem do farmacêutico como uma espécie de
médico dos momentos de aflição tornou-se definitivamente
coisa do passado. Se no início do século 20 o
apelo da profissão firmava-se na profusão de anúncios
de remédios nos bondes – “Salvou-o o Rhum creosotado”
–, nos anos 1960 o mercado de trabalho expandiuse
geometricamente, com a instalação do parque de
indústrias de medicamentos no país. A maioria dos
farmacêuticos-bioquímicos sai da faculdade para trabalhar
em fábricas de remédios.As áreas de análises clínicas
e da indústria de alimentos também atraem profissionais
– num mercado de trabalho que continua a
mudar. Nos últimos quatro anos, o currículo da Faculdade
de Ciências Farmacêuticas da USP ganhou 21 novas
disciplinas – temas momentosos como Alimentos
Geneticamente Modificados,Medicamentos Genéricos
e Bioequivalência ou Toxicologia Forense. A instituição,
como se vê, está sempre se reinventando. •
PESQUISA FAPESP 103  SETEMBRO DE 2004  57
vro A vida da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da
Universidade de São Paulo (1984).
Essa época foi um divisor de águas na trajetória da
instituição. A troca de endereços teve, é certo, um impacto
simbólico. Ficou para trás o prédio erguido nas
várzeas despovoadas do Bom Retiro no início do século
20. A construção original continua de pé e, tombada
pelo patrimônio histórico, abriga oficinas culturais do
governo do Estado de São Paulo. Os antigos alunos
guardam memórias prosaicas do edifício de 136 janelas.
Como a imagem solene do professor siciliano Quintino
Mingoja. “Ele exigia que os alunos ficassem de pé quando
entrava na sala de aula”, afirma Paulo Minami, professor
aposentado do Departamento de Análises Clínicas
e Toxicológicas, organizador do acervo histórico da
faculdade. “Mingoja se aposentou e depois voltou à faculdade
para dar aulas. Ficou muito magoado no primeiro
dia de aula, quando uma turma desavisada permaneceu
sentada quando ele entrou na sala.” No prédio
da rua Três Rios os universitários cortejavam as moças
do Colégio Santa Ignês, do outro lado da rua. A antiga
T
Cenas da escola em 1908:
exame oral num anfiteatro (acima),
aula prática de química industrial
(abaixo), laboratórios
de odontologia e de física (à esq.).
FOTOS EDUARDO CESAR
O mural de Carlos Magano,
feito nos anos 1950
e recém-restaurado,
é um símbolo da faculdade
PESQUISA FAPESP 105  NOVEMBRO DE 2004  57
USP70
Trincheira
do ensino
público
Na série de reportagens
sobre os 70 anos
da Universidade de São Paulo,
Pesquisa FAPESP
mostra a contribuição
da Faculdade de Educação
por uma escola
de qualidade e para todos
FABRÍCIO MARQUES
58  NOVEMBRO DE 2004  PESQUISA FAPESP 105
trajetória da Faculdade de Educação
da Universidade de São Paulo (USP)
pode ser narrada em três etapas, e
todas elas são marcadas pelo compromisso
com a construção de
uma escola pública, leiga e acessível
a todos. O embrião surgiu
no início da década de
1930, na Escola Normal Secundária
da Praça da República,
no centro paulistano, onde hoje funciona a Secretaria
de Educação do Estado de São Paulo (o prédio,
por sinal, é um símbolo do ensino leigo: foi erguido nos
primeiros anos da República com verba e terreno que o
finado Império reservara à construção de uma catedral).
Numa época em que quase a metade da população infantil
estava fora da escola e a maioria dos professores
primários levava na bagagem apenas quatro anos de instrução
primária, um grupo de docentes da Escola Normal
da Praça começou a articular a fundação de uma pioneira
instituição de ensino superior de pedagogia. A
idéia dos educadores Antônio Sampaio Dória, Manuel
Lourenço Filho e Fernando de Azevedo também tinha
um cunho nacionalista, uma vez que era gigantesco o
fosso entre o grau educacional dos brasileiros nativos e
o dos imigrantes europeus. Desse esforço surge, em 1933,
o Instituto de Educação, centro de nível superior vinculado
à Escola Normal. Teve vida efêmera como instituição
independente. Em 1934 incorpora-se à nascente
Universidade de São Paulo e, em 1938, transforma-se em
Seção de Pedagogia da Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras (FFCL), incumbido, principalmente, da tarefa de
dar formação pedagógica a professores secundários de
diversas disciplinas formados pela USP.
Um segundo momento importante para a história
da faculdade remonta ao ano de 1956, quando o Ministério
da Educação e Cultura (MEC) e a USP assinam um
convênio e montam, dentro da Cidade Universitária, o
Centro Regional de Pesquisas Educacionais (CRPE) de
São Paulo.Tratava-se de um braço de um órgão do MEC,
o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (Inep), voltado
para pesquisas e treinamento de professores. Seu
idealizador era o filósofo da educação Anísio Teixeira,
cujas idéias nortearam uma notável renovação pedagógica
em meados do século 20 e deram lastro ao início da
ampliação do acesso à escola aos brasileiros mais pobres.
O CRPE partilhava professores com a Seção de Pedagogia
da FFCL, mas as instituições seguiam independentes.
Cada uma delas tinha sua Escola de Aplicação: a do
CRPE, apenas de ensino básico; a da USP, a Escola Fidelino
de Figueiredo, de ensino ginasial e médio.
O dia 1º de janeiro de 1970 marca a terceira etapa da
trajetória, com a fundação da Faculdade de Educação
nos moldes em que ela funciona hoje. A unidade é criada,
na esteira da reforma universitária de 1968, com a
emancipação da Seção de Pedagogia da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras, e sua fusão com o CRPE,
que cede suas instalações e acaba extinto. Da FFCL, a
Faculdade de Educação herdou professores formados
sob a influência das missões estrangeiras que fizeram a
USP e inspirados pela Campanha em Defesa da Escola
Pública, liderada pelo sociólogo Florestan Fernandes no
início dos anos 1960. Do CRPE, recebeu sua sede atual
(parcialmente demolida e reconstruída, por problemas
de movimentação de solo), educadores que formaram
gerações de pesquisadores, como Roque Spencer Maciel
e Laerte Ramos de Carvalho, além da Escola de Aplicação
(aquela que pertencia à Faculdade de Filosofia, laboratório
de experiências inovadoras, foi sumariamente
fechada pela ditadura).
“As preocupações dos criadores do Instituto de Educação
e do CRPE ajudam a explicar a nossa tradição de
pesquisa, historicamente voltada para a expansão e a
melhoria do ensino público”, diz Celso de Rui Beisiegel,
professor de Sociologia da Educação, que começou a
carreira como pesquisador do CRPE e ajudou a fundar
a unidade nos anos 70. Com cerca de 800 alunos de
pedagogia, 600 de pós-graduação, 8 mil matrículas na
licenciatura e 107 docentes, a instituição segue como
referência em pesquisas educacionais. Alguns exemplos
de projetos apoiados pela FAPESP ilustram a diversidade
temática e o espectro de preocupações que orientam
os pesquisadores da faculdade. Um dessas linhas de
investigação é a formação de professores e a análise de
aprendizado das ciências. “Temos um grupo robusto,
que também produz e avalia material didático”, diz a
professora Myriam Krasilchik, pesquisadora no campo
do ensino da biologia, que foi diretora da Faculdade de
Educação e vice-reitora da USP. Nos últimos tempos,
Myriam envolveu-se num projeto de educação ambiental
em duas cidades do interior paulista.
A professora Anna Maria Pessoa de Carvalho trabalha
com duas equipes de professores de colégios públicos
em busca de experiências inovadoras no ensino da física
tanto nas escolas fundamental e média. Um dos objetivos
dos grupos é levantar os tipos de experiências que
possibilitam o aprendizado do aluno. Foram produzidos
15 vídeos com imagens de sala de aula, capazes de
sinalizar algumas experiências didáticas que ajudam o
aluno a aprender. Outro resultado prático foi o guia para
professores Termodinâmica - Um ensino por investigação,
com práticas metodológicas
desenvolvidas pelo grupo de
professores do ensino médio. A
grande conclusão é que o aprendizado
de física depende de atividades
em sala de aula capazes
de provocar argumentações e de
permitir aos alunos o levantamento
e o teste de hipóteses.
Numa experiência sobre dilatação,
por exemplo, os professores
colocam uma bexiga no
bocal de um recipiente de vidro
e aquecem sua base. A bexiga
USP70
Cenas dos anos 1960:
professoras estagiárias
no prédio do CRPE
(alto); mãe de aluno
ajudando em aula de
ciências no Colégio de
Aplicação (à esq.);
professoras em
treinamento e alunos
em aula de linguagem
(à dir.)
A
PESQUISA FAPESP 105  NOVEMBRO DE 2004  59
tora Unesp. As obras didáticas são obtidas de fontes diversas,
como sebos e bibliotecas, com o objetivo de ajudar
a compreender a dinâmica da educação no passado.
Se o livro estiver usado, com exercícios respondidos,
mais rica é essa compreensão. Numa obra antiga os pesquisadores
encontraram até fragmentos de papel com
cola para prova, combustível importante para o estudo
dos usos e costumes das escolas.
o acervo há raridades publicadas
no século 19, algumas delas obtidas
na França, onde se imprimia
boa parte dos livros usados nas escolas
do Brasil Império. “Minha
vida é freqüentar sebos”, diz a professora
Circe. “Quando os sebos
ainda não sabem que a gente está
interessada, sai barato”, ela explica.Uma limitação para a
pesquisa é que os livros didáticos distribuídos pelo governo,
hoje, têm de ser reaproveitados, inibindo a interação
dos alunos. “Tentamos preencher essa lacuna recolhendo
cadernos”, afirma a professora.
É possível citar outras contribuições da Faculdade de
Educação, como o trabalho teórico da professora Marília
Spósito sobre os jovens, em especial sobre políticas
públicas para a juventude no Brasil nos últimos anos.
infla – o que serve de ponto de partida para a discussão
do fenômeno. “Os alunos debatem e algum deles acaba
sugerindo que a bexiga inchou porque o ar quente, afinal,
sobe. Em seguida, vira-se o recipiente de cabeça para
baixo e a bexiga continua inflada. O professor conduz as
discussões rumo à real explicação, que é a dilatação do
ar, e os alunos constroem seus conhecimentos formulando
hipóteses e colocando-as à prova”, diz a professora
Anna. Outra iniciativa com bons efeitos é a discussão
de textos originais de cientistas, em que os alunos percebem
a importância do trabalho de equipe, da curiosidade
e da perseverança nas descobertas. “A maioria das
pessoas não se lembra de nada do que aprendeu nas aulas
de física”, diz Anna. “Alguns dizem que gostavam das
atividades de laboratório, mas também não conseguem
lembrar exatamente do que gostaram. É um sinal de que
o ensino tradicional de física está falido.” O esforço em
desenvolver uma nova metodologia esbarra sobretudo
na parca carga horária da disciplina nas escolas públicas.
“Com uma aula por semana, dá para fazer muito pouco”,
afirma.
A Faculdade de Educação
tem forte tradição também no
estudo da história da educação.
Se a corrente hegemônica, até
os anos 1970, voltava-se para a
história das idéias pedagógicas
e o perfil dos teóricos, dos anos
80 para cá o foco recaiu sobre
novos protagonistas: professores
e alunos.“A década de 1980,
de modo geral, marca uma mudança
na pesquisa da faculdade,
agora mais voltada para o
chão da escola e para a pluralidade
de orientações teóricas”,
explica a professora Marília
Spósito, presidente da Comissão
de Pesquisa.
Um exemplo dessa vertente
é o esforço para levantar a
trajetória do livro didático no
Brasil. Sob a liderança da professora
Circe Bittencourt, o
Centro de Memória da Educação,
vinculado à faculdade,
vem construindo um acervo
de obras didáticas, material escolar
e depoimentos orais de
professores e alunos. Uma tese
sobre o tema defendida pela
professora Circe em 1993, “Livro
didático: conhecimento histórico”,
será publicada em livro
nos próximos meses pela Edi-
USP
N
70
60  NOVEMBRO DE 2004  PESQUISA FAPESP 105
Ou as pesquisas da professora Tizuko Morchida Kishimoto
no Laboratório de Brinquedos e Materiais Pedagógicos.
Ao avaliar o potencial dos brinquedos em atividades
pedagógicas, o laboratório busca colher subsídios
para a formação de professores de educação infantil. A
professora Selma Garrido Pimenta, atual diretora da
faculdade, desenvolve um trabalho que se tornou referência
sobre a formação de professores em todo o país.
Um dos frutos dessa linha de pesquisa foi um projeto
que coordenou, voltado à investigação do processo de
produção do conhecimento dos professores, desenvolvido
entre 1996 e 2000 em duas escolas públicas da periferia
de São Paulo. O combustível da pesquisa foi a
reflexão dos próprios professores sobre as práticas pedagógicas,
uma metodologia qualitativa inovadora.
Destacam-se, ainda, as pesquisas dos professores Celso
Beisiegel sobre políticas públicas e as conseqüências
da expansão do ensino. Sua contribuição mais recente
foi a pesquisa Construção de banco de dados sobre experiências
de professores da universidade pública na administração
da educação pública das últimas décadas.Orientados
por Beisiegel e pelo professor Romualdo Portela de Oliveira,
também da faculdade, sete alunos percorreram
vários estados do Brasil coletando e registrando informações
sobre as atividades de professores em universidades
públicas na elaboração e na execução de políticas
educacionais. Levantaram documentos, entrevistaram
educadores e promoveram seminários com a participação
desses professores a fim de entender o trabalho que
desenvolviam e debater a sua importância.
A instituição é conhecida como formadora de quadros.
Secretária da Educação do Estado de São Paulo por
quase oito anos, a pedagoga Rose Neubauer saiu dos
quadros docentes da instituição. Outra professora, Lisete
Arelaro, foi Secretária de Educação do Município de
Diadema. Num passado recente, a faculdade forneceu
uma vice-reitora para a USP, Myriam Krasilchik, e dois
pró-reitores de graduação, Celso Beisiegel e Sonia Penin,
ainda em exercício. “A faculdade justifica sua presença
dentro da Universidade de São Paulo”, orgulha-se o professor
Beisiegel. •
PESQUISA FAPESP 105  NOVEMBRO DE 2004  61
Acima, autoridades
na inauguração do CRPE,
em 1956. Abaixo,
funcionário embala publicações
pedagógicas
para enviar a professores
60  DEZEMBRO DE 2004  PESQUISA FAPESP 106
USP70
Aconquista
doLeste
Na última reportagem
da série sobre os 70 anos
da Universidade de
São Paulo,Pesquisa FAPESP
mostra o inovador
projeto pedagógico que,
a partir de 2005, terá espaço
num novo campus da
capital paulista
FABRÍCIO MARQUES
Universidade de São Paulo (USP)
sempre se preocupou em renovar os
compromissos de excelência acadêmica
e de expansão do ensino público
estabelecidos em sua fundação,
em 1934. No início buscou
agrupar no campus na Zona
Oeste de São Paulo, na antiga
fazenda Butantan, todos os
seus institutos e faculdades,
numa estratégia para assegurar a qualidade homogênea
– só as tradicionais faculdades de Medicina e de Direito,
que já existiam antes da fundação da USP, resistiram em
seus endereços originais. Já consolidada, decidiu deitar
raízes também em outras regiões do estado.Hoje possui
campi nos municípios de Bauru, Piracicaba, Pirassununga,
Ribeirão Preto e São Carlos. Pois agora, aos 70 anos
de idade, a universidade dá mais um salto ambicioso.
Em março de 2005 começam as aulas da USP Leste, um
novo campus que está sendo erguido às margens do rio
Tietê e da rodovia Ayrton Senna, que liga São Paulo a Jacareí.
Com cursos diferentes dos oferecidos na Cidade
Universitária e um projeto acadêmico inovador, em que
as fronteiras entre as carreiras são mais flexíveis, a instituição
também é um marco na Zona Leste de São Paulo,
região habitada por 4,5 milhões de pessoas, escassamente
assistida pelo ensino superior público. No vestibular
de 2005, a Escola de Artes, Ciências e Humanidades –
nome ainda provisório da nova instituição – vai oferecer
1.020 vagas nos cursos de Sistemas de Informação,Ciências
da Natureza (Licenciatura), Obstetrícia, Gerontologia,
Ciências da Atividade Física,Marketing, Lazer e Turismo,
Gestão de Políticas Públicas, Gestão Ambiental e
Tecnologia Têxtil. Os alunos serão divididos em turmas
de 60 pessoas, distribuídas pelos períodos matutino, vespertino
e noturno. No canteiro de obras, operários estão
concluindo o primeiro prédio, que abrigará os alunos
do ciclo básico, primeiro ano comum a todas as
carreiras.“Trata-se da obra de maior repercussão durante
as comemorações dos 70 anos da USP”, disse o reitor
da USP, Adolpho José Melfi.
O projeto demorou 30 meses para amadurecer e envolveu
o trabalho de mais de uma centena de docentes,
sob a coordenação-geral de Celso de Barros Gomes, che-
A
PESQUISA FAPESP 106  DEZEMBRO DE 2004  61
DIVULGAÇÃO
A concepção artística mostra como
o campus da USP Leste estará
em 2006, quando todos os prédios
estiverem construídos
fe de gabinete da Reitoria, e de Myriam Krasilchick,
professora da Faculdade de Educação e presidente da
Comissão Central da USP Leste no tocante ao projeto
acadêmico. O processo de escolha dos novos cursos envolveu
consultas a estudantes de escolas públicas e privadas
de São Paulo. Quase seis mil alunos foram convidados
a opinar. A consulta mostrou a preferência por
profissões tradicionais, como medicina e engenharia,
mas outras carreiras puderam ser identificadas, como
informática, marketing e esportes. A definição, contudo,
foi moldada por uma limitação jurídica. O Estatuto
da USP proíbe que haja duplicidade de cursos numa
mesma cidade. Ou seja, nenhuma carreira na Zona
Oeste poderia ser oferecida na Zona Leste. Depois de
muita discussão, em que todas as unidades da USP foram
ouvidas para evitar que os cursos da Zona Leste
abortassem projetos em andamento na universidade,
chegou-se ao conjunto de dez carreiras. Algumas chegam
a tangenciar outras já oferecidas, mas os currículos
não se chocam.
O desenvolvimento do projeto acadêmico é um dos
capítulos mais vibrantes na trajetória da futura instituição.
Embora as carreiras pertençam a áreas distintas do
conhecimento, todas comungarão de um mesmo ciclo
básico, o primeiro ano comum a todos os alunos ingressantes
na Escola de Artes,Ciências e Humanidades. O diálogo
entre os cursos, estimulado pela ausência de uma
rígida estrutura de departamentos, também terá espaço
na formação de núcleos de pesquisa interdisciplinares,
como o Laboratório de Estudos e Pesquisas sobre Complexidade
e Cidadania, o Observatório de Políticas Públicas
e o Observatório de Pesquisas Integradas sobre
Meio Ambiente Urbano, para citar alguns exemplos.
O currículo do ciclo básico gira em torno de três eixos.
Parte dele compreende matérias introdutórias, mas
com propostas interdisciplinares, como “Sociedades complexas,
multiculturalismo e direitos” ou “Psicologia, educação
e temas contemporâneos”. “Essa diversidade deverá
ser encarada como oportunidade exemplar para a
construção de novas fronteiras na organização do co62
 DEZEMBRO DE 2004  PESQUISA FAPESP 106
nhecimento”, diz a professora Myriam. Outro
quinhão da carga horária é específico de cada
carreira. Isso para evitar a frustração dos calouros
com o excesso de disciplinas genéricas
e introdutórias no primeiro ano, que é um
dos fatores responsáveis pela evasão escolar.
E um terceiro pedaço da carga horária segue
uma experiência inovadora. É composto
por disciplinas em que o desafio do estudante
é dar solução a problemas concretos. “Promover
a iniciação acadêmica e científica por
meio da resolução de problemas é uma das
abordagens inovadoras surgidas nos últimos
anos, que vem ganhando espaço em algumas
das principais universidades européias e
norte-americanas”, diz a professora Myriam.
“A intenção é criar um ambiente para dar autonomia
intelectual aos alunos que acabam
de sair da escola média”, ela afirma.
rocessos acadêmicos de resolução
de problemas envolvem
os alunos de várias maneiras.
Primeiro eles discutem o
problema, que não tem resposta
simples. Depois utilizam
seus conhecimentos e
experiências na tentativa de achar uma saída.
Levantam hipóteses, investigam-nas e, por
fim, preparam um trabalho coletivo com
possíveis soluções. “A proposta estimula o
protagonismo dos estudantes na compreensão
da complexidade dos fenômenos e promove
a troca e a cooperação entre docentes,
estudantes e comunidade”, diz Valéria Amorim Arantes,
professora da Faculdade de Educação e coordenadora
do ciclo básico, que se inspirou em modelos como o da
Universidade de Aalborg, na Dinamarca, onde esteve recentemente.
Outra característica do projeto acadêmico é
a utilização de recursos multimídia e da informática. Os
cursos e atividades terão como suporte um site que reunirá
seus conteúdos, a exemplo de uma experiência de
sucesso realizada pela Escola Politécnica da USP.
Toda essa proposta foi submetida a um importante
crivo, o das inscrições para o vestibular. Quase 6 mil candidatos,
na imensa maioria moradores da própria Zona
Leste, inscreveram-se no primeiro vestibular e vão concorrer
às 1.020 vagas oferecidas nas dez carreiras. O curso
mais concorrido é o de Sistemas de Informação (9,47
candidatos por vaga), seguido pelos de Marketing, Lazer
e Turismo, Obstetrícia e Tecnologia Têxtil. É certo que,
entre os dez cursos menos concorridos no vestibular da
Fuvest, cinco pertencem à USP Zona Leste: Ciências da
Natureza (uma licenciatura para formação de professores),
Ciências da Atividade Física, Gerontologia, Gestão
de Políticas Públicas e Gestão Ambiental – com concorrência
entre 2,17 e 4,44 candidatos por vaga. O saldo,
contudo, é considerado positivo. Projetava-se um contingente
de candidatos menor, na casa dos 4 mil a 5 mil
inscritos. Como os cursos são novos e desconhecidos, é
natural que não atraiam multidões. No final da década
de 1930, logo depois de a USP ser fundada, as salas de
aula da recém-criada Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras (FFCL) ficavam literalmente às moscas, pois os
candidatos ao vestibular continuavam concorrendo às
tradicionais Faculdade de Medicina, Escola Politécnica e
Faculdade de Direito, incorporadas à estrutura da nova
universidade.
O interesse de docentes por trabalhar na nova instituição
é animador. Os editais dos processos seletivos
USP70
No canteiro de obras, operários
concluem as instalações que,
em março de 2005, receberão
a primeira turma de 1.020 alunos
P
PESQUISA FAPESP 106  DEZEMBRO DE 2004  63
tadas para abrigar o campus: o Parque do
Carmo, no bairro de Itaquera, e uma área na
zona do Parque Ecológico do Tietê. O Parque
do Carmo foi logo descartado por razões
ambientais. A segunda área também tinha
empecilhos ecológicos, mas eles puderam ser
contornados. O plano inicial era erguer a
unidade numa gleba de mata fechada, de 1
milhão de metros quadrados, paralela ao leito
do rio. O conjunto arquitetônico, idealizado
pelo professor Sylvio Sawaia, era ambicioso.
Previa a construção de quatro prédios
interligados e dispostos como lados de um
quadrado. O miolo do quadrilátero formaria
uma enorme praça. Outros prédios seriam
erguidos acompanhando o leito do Tietê e,
numa gleba próxima, de 250 mil metros quadrados,
haveria um centro esportivo.O plano
desmoronou quando os órgãos ambientais
vetaram o uso da área de mata fechada. Para
salvar o projeto, inverteu-se a estratégia. A
gleba à beira do Tietê vai ser aproveitada como
um laboratório ambiental a céu aberto. E
o conjunto de prédios foi transferido para a
segunda gleba, aquela que abrigaria o centro
esportivo, onde não há entraves ecológicos.
Trata-se de um aterro.
O projeto arquitetônico foi simplificado.
Para não perder tempo, optou-se por começar
as obras erguendo uma construção idêntica
a um dos prédios do campus da USP de
São Carlos. É ali que, em março de 2005, começará
a funcionar o ciclo básico. No primeiro
ano estarão prontos esse prédio, com
5.200 metros quadrados, uma guarita, um
posto de segurança, o centro de apoio técnico,
de 600 metros quadrados, dotado de salas
para docentes e funcionários, além de
uma construção destinada ao serviço de refeições.
As obras continuarão em 2005, com a construção
de outro prédio com 17 mil metros quadrados, de
uma biblioteca com 7,2 mil metros quadrados e de instalações
destinadas a serviços. Em 2006 um terceiro
prédio será entregue, com 17 mil metros quadrados.
O acesso será feito pela rodovia Ayrton Senna, ou pela
avenida Assis Ribeiro, no bairro de Ermelino Matarazzo,
que delimita o novo campus. Outro meio de acesso é
uma linha da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos
(CPTM), que tem duas estações nas proximidades.
No futuro será construída uma nova estação de trem destinada
à USP Leste. A integração da nova instituição com
a comunidade também está prevista. De um lado, continuará
funcionando numa casa do bairro o Núcleo de
Apoio Social, Cultural e Educacional (Nasce), um centro
de extensão universitária com atividades voltadas para a
população, que já vem oferecendo cursos desde abril de
2004. Também funcionarão nas imediações do campus
uma escola estadual de ensino fundamental e médio e
outra municipal, de educação infantil. •
que preencherão as 69 vagas necessárias para o primeiro
ano estão em andamento. Isso envolveu a formação
de 31 bancas examinadoras.Mas, antes que esse processo
fosse aberto, fez-se uma consulta a professores da
USP sobre o interesse de se transferirem para a Zona
Leste. Dezoito foram pré-selecionados e, ao final do
processo, dez professores tiveram seus pedidos de transferência
aceitos. “A idéia inicial era de evitar que esse
aproveitamento superasse 20% das vagas”, diz o coordenador-
geral Celso de Barros Gomes. “É uma instituição
nova e é importante que tenhamos também material
humano novo para erguê-la.” Da mesma forma, os atuais
funcionários tiveram a chance de se candidatar aos 86
empregos que serão criados na Zona Leste, no primeiro
ano de funcionamento. Despontaram 208 interessados.
O trabalho da Comissão Central é avaliar quais se encaixam
nos cargos para, depois, abrir concursos para
preencher os que sobrarem.
O plano de implantar a USP Leste começou a ser
gestado em 2002. A princípio, duas áreas foram cogi-
FOTOS EDUARDO CESAR